Nos anos 70, os programas de maior audiência eram as chamadas “novelas das 8h”, com tramas mais densas que as “novelas das 7h” e menos “ousadas” do que as conhecidas “novelas das 10h”. A gente sabia que essas últimas não eram para crianças.
Bem, é claro que as novelas (elas também!) foram alvo da censura que se estabeleceu no país devido ao regime militar. Logicamente, as tramas e os personagens eram um alvo fácil do pessoal lá de Brasília, sempre alerta contra tudo o que “atentasse contra a pátria ou contra a família brasileira” etc. Nesse cenário (sem trocadilho!), muitas novelas tiveram que ser modificadas, mas a ousadia de algumas não pode ser esquecida.
Eram tempos muito distantes dos “Direitos LGBTQ+”, de casamentos homoafetivos, de paradas na avenida Paulista, de beijos entre pessoas de mesmo gênero na TV etc.
Eu era menino, mas já prestava atenção ao personagem vivido pelo grande ator e diretor polonês Ziembinski em “O bofe”, novela de Bráulio Pedroso. A trama foi ao ar entre 17 de julho de 1972 e 23 de janeiro de 1973 e, segundo Ismael Fernandes, em seu livro “Memória da Telenovela Brasileira, “o deboche era a estrutura da novela; os personagens não se comportavam com sensatez, mas ao sabor da piada”. Segundo o autor, Ziembinski foi, nessa trama, o primeiro ator travestido da TV no país – Stanislava era uma velha que se embebedava de xarope e sonhava com um príncipe trapezista (Jardel Filho). Isso tudo no começo dos anos de 1970, quando a ditadura vivia seus dias de maior rigor e repressão!
Outra curiosidade é que o termo “bofe” era gíria da época para homem feio ou desengonçado – como os mecânicos Dorival e Demétrius (Jardel Filho e Cláudio Marzo, respectivamente). Mais tarde, a gíria passou a ser utilizada pela comunidade gay e pelo público feminino com significado contrário: homem atraente, másculo e bonito.
Quase dois anos depois, é a vez de o mesmo Bráulio Pedroso escrever uma outra novela, marcante e inovadora sob diversos aspectos. De 04 de novembro de 1974 a 11 de abril de 1975, também no horário das 22h, foi ao ar “O Rebu”. Como escreve Ismael Fernandes, “a novela trouxe excepcional criação, elenco e produção: a trama inteira foi a duração de uma noite, numa sequência de cenas sem ordem cronológica e sem simultaneidade; sua ação foi dividida em três fases: o presente (a investigação de um crime – alguém morreu na festa), o tempo da festa (o mais atuante) e as informações posteriores sobre cada personagem (o problema que cada um enfrentava)”.
Mas as inovações não pararam por aí: a festa era uma recepção de Conrad Mahler (de novo, Ziembinski) para uma princesa italiana (a atriz Marília Branco). Depois de muita investigação, descobre-se que o crime, na verdade, foi passional: o anfitrião, perfeito e classudo, mata a jovem Sílvia (Bete Mendes) por ciúme do relacionamento da moça com Cauê (Buza Ferraz), um garotão carioca que vivia sob a “proteção” do milionário. Precisa dizer mais? Se isso já seria uma boa trama hoje, imaginem em 1974/75, quando não se cogitava falar em amores homossexuais na TV, muito menos de um aristocrata em idade avançada que tivesse um caso com um rapaz mais jovem. Ziembinski talvez tenha interpretado o primeiro “sugar daddy” da TV brasileira!
Entre 27 de outubro de 1975 e 30 de abril de 1976, a Globo pôs no ar a novela de Jorge Andrade, “O Grito”. Tudo se passava no Edifício Paraíso, chique e requintado, mas que perdera o valor com a construção do Minhocão, passando à altura dos dois primeiros andares. Por isso só, já se pode avaliar o grau de realismo da trama: quantos apartamentos perderam o valor com a construção do elevado! Até hoje, ele é alvo de polêmicas e discussões. Há quem o considere um monstrengo de cimento que deixa a cidade ainda mais feia.
Voltando à novela, os personagens são os moradores do prédio com seus problemas e conflitos. O título da obra faz referência a um menino (Paulinho), filho da personagem de Glória Menezes (a ex-freira Marta): com problemas mentais, ele grita e perturba o sono e a tranquilidade dos vizinhos. A questão era se ele deveria ou não permanecer no prédio, se teria ou não o direito de morar ali. Até que ponto o ser humano poderia ser frio e insensível à doença de uma criança?
Outros temas importantes e bem atuais também eram abordados na trama: a intolerância, a solidão, o anonimato, a falta de solidariedade, a poluição sonora e do ar, a desvalorização de áreas antes consideradas nobres, o caos de uma cidade como São Paulo etc.
Em meio a tudo isso, a censura não gostou do personagem de Rubens de Falco: Agenor era gay e tinha o costume de se travestir para ir a boates do centro. Tudo era muito velado, mas bastava que se prestasse atenção ao texto para que se entendesse qual era o hábito do rapaz. Seus pais (Ida Gomes e Castro Gonzaga) eram pessoas envergonhadas e tristes diante dos outros moradores. Há que se ressaltar a coragem de Rubens ao interpretar um homossexual em plena ditadura – muita gente não toparia.
Bem, a censura “aguentou” aquilo até certo ponto: com o desenvolvimento da trama, o autor foi obrigado a “arrumar” um romance entre Agenor e Kátia (interpretada por Yoná Magalhães), descaracterizando, assim, o que o autor havia planejado. Agenor virou hetero de uma hora pra outra!
Não se pode afirmar que o fracasso da novela tenha sido exatamente por causa dessa mudança. A “Wikipedia” dá conta de que “por mais interessante que os temas da novela fossem, ela não conseguiu alcançar os objetivos a que se propôs. Inclusive, gerou indignação entre os moradores da capital paulista, que acusaram o autor de tentar criticar a cidade. Essa problemática chegou ao Congresso Nacional, e o então deputado federal Aurélio Campos fez duras críticas sobre a distorção da cidade de São Paulo, que, segundo ele, a novela vinha fazendo”. A gente vê, portanto, que o tal “mimimi” não é tão recente assim.
Na minha opinião, as pessoas não estavam preparadas para uma novela tão realista e de crítica social tão contundente. Talvez reinasse ainda o pensamento de que TV era para alienar, não para fazer pensar.
Há algumas cenas dessas três obras no Youtube. Infelizmente, em 4 de junho de 1976, a Globo foi vítima de um incêndio, e muito de seu arquivo foi queimado para sempre. De qualquer forma, essas tramas deram os primeiros passos para o que viria depois.
Hoje, quem vê homossexuais nas novelas talvez ache bem natural… mas o caminho foi longo… bastante longo! Seria interessante que a moçada soubesse disso.
4 Comments
Verdades, você sempre nos trás lembranças, reflexões e verdades.
Beijos no coração
Saudoso Ziembinski! Muitos caminhos foram percorridos, as coisas mudaram, hoje é “natural”. Concordo plenamente que os mais jovens precisam e devem saber disso tudo, pena que nem todos. O que eles querem mesmo é “lacrar”.
Uma apresentação bem atual de temas tão antigos.
Realmente seria importante tanto os mais jovens como todos nós aliás, termos pelo menos uma idéia do que era ser “LGBTQIA+” em Tempos de Ditadura e até antes ,para vermos como a Sociedade está ampliando e melhorando a Vida de todos nós e em constantes mudanças, embora problemas ainda façam parte da Vida de todos .
Gostei muito do relato sobre as Novelas que de uma maneira ou outra tocavam neste assunto delicado de Sexualidade em plena Ditadura .
Ziembinski,Ator,Diretor de peças de Teatro e muito inteligente,infelizmente nada assisti com este Grande Ator , o
que tinha visto foram reportagens na TV sobre o mesmo.
Nesta época destas novelas aqui citadas eu não assistia, pois ainda não tinha nem 10 anos e se fosse hoje gostaria muito de ver.
Eram Temas palpitantes .
Rubens de Falco da Novela “Escrava Isaura” ,recordo-me dele nesta Novela e eu não sabia do personagem que viveu em
“O Grito”. Realmente para a Época ele foi corajoso.
Bela Crônica e com certeza procurarei na Internet cenas das Novelas aqui citadas.👏👏👏