NA MARIA ANTÓNIA
28 de março, 2025
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TUDO O QUE OCULTAMOS

Carl Gustav Jung (1875-1961) nasceu na Suíça e foi um discípulo de Freud. Mais tarde, distanciou-se do médico austríaco e foi viver as próprias teorias e concepções sobre a Psiquiatria e sobre o mundo. Viajou, pesquisou, clinicou, viveu uma vida singular (tendo até se recusado a atender Hitler) e desenvolveu teorias que até hoje ressoam em consultórios de psiquiatras e em publicações especializadas no assunto. Sua obra é fascinante.

Jung chamava de “Sombra” todos os aspectos reprimidos da psique, aqueles que a consciência rejeita por medo, vergonha ou conveniência. A questão, segundo o médico suíço, é que ignorar esses aspectos não os faz desaparecer, pelo contrário: eles operam “nos bastidores”, influenciando comportamentos, escolhas e emoções de forma inconsciente. A integração da “Sombra” não significa dar vazão a impulsos destrutivos, mas reconhecer aquele nosso lado oculto para entendermos seu papel na nossa estrutura psicológica. Sem esse processo, a pessoa permanece refém de papéis autodestrutivos e de autossabotagem e não percebe o que está fazendo. Esconder a própria “Sombra” dá uma ideia errônea e ingênua de controle, mas a realidade sempre encontra um modo de expor o que foi suprimido e escondido.

Uma raiva reprimida pode explodir por “um nada”; um ressentimento escondido e sufocado pode se manifestar de uma maneira surpreendente para o ressentido e para os que estão à sua volta; um desejo reprimido pode sabotar relacionamentos ou gerar frustrações sem explicações aparentes.

Sobre a repetição em nossas vidas, Jung dizia que “até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamar isso de destino”. Pois é! Quantas vezes nos queixamos de situações e de pessoas que nos fazem reviver situações as quais não gostaríamos de repetir! Um emprego, um relacionamento, um projeto etc. “Meu destino é esse”, dizem os menos avisados – e vão se repetindo, sem perceberem que têm o poder de mudar essa história. A auto-observação é fundamental, pois ela nos leva ao autoconhecimento também. Claro que, em alguns casos, a ajuda profissional é muito importante. Uma pessoa que aprende a lidar com sua agressividade, por exemplo, pode transformá-la em determinação. E assim por diante.

Resolvi escrever um pouco sobre isso (muito pouco, diante da riqueza que é a obra de Jung!) porque eu estava ouvindo a música “Revelação” e a letra de Clodo e Clésio Ferreira me remeteu diretamente ao psiquiatra europeu. A canção ficou famosa na voz do Fagner, no fim da década de 1970.

Eu era um molecão de 15 anos de idade, quando ela foi lançada, e obviamente não tinha a mínima maturidade para compreender a música de que eu já gostava. Na primeira estrofe, a letra diz o seguinte:

“Um dia vestido de saudade viva
Faz ressuscitar
Casas mal vividas, camas repartidas
Faz se revelar”

A estrofe fala da separação (“camas repartidas”) e, como consequência dela, a “saudade viva” que fará ressuscitar o que parecia adormecido e quieto. A brasa estava adormecida. Mas é na segunda estrofe que os letristas – consciente ou inconscientemente – nos remetem a Jung e à sua teoria da “Sombra”:

“Quando a gente tenta de toda maneira
Dele se guardar,
Sentimento ilhado, morto e amordaçado,
Volta a incomodar”.

É isso! As paixões mal resolvidas (e por “paixões” estendo o sentido para amor, admiração, afeto, ódio, raiva, ciúme, inveja, ressentimento etc.), jogadas para debaixo do tapete, voltam com uma força descomunal. De novo, nas palavras do próprio médico suíço, “aquilo a que resistimos não apenas persiste, mas cresce dentro de nós”.

De uns anos para cá, com a maturidade, essa música tomou um novo significado para mim. Pensei nos meus desejos e anseios de juventude – sobretudo na minha homossexualidade, que eu reprimia para ser aceito e negava por força dos costumes e da religião em que fui educado. Na minha “Sombra”, estavam contidos os meus “desejos pecaminosos”, dos quais eu tinha que sentir vergonha.

Comprovando o que Jung dizia, claro que tudo veio com uma força enorme e eu não pude (e não quis) mais mentir para mim mesmo. Meu “sentimento ilhado, morto e amordaçado” voltou a “incomodar” quando me tornei adulto, e percebi que não tinha sentido fugir da vida que me esperava.

Ao fim e ao cabo, é bom lembrar do aforismo grego: “Conhece-te a ti mesmo”.

Nossa “Sombra” está mais repleta de sentimentos sufocados do que imaginamos. Precisamos encará-los para viver em paz com eles e com nós mesmos.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

3 Comments

  1. Professor, nunca me atentei na letra da música que ficou famosa na voz do Fagner! Sei que tocou e muito nas rádios, e sabe como são as coisas – não nos atentamos, a letra diz muita coisa, muita. Por muito tempo eu “vivi” a segunda estrofe:

    “Quando a gente tenta de toda maneira
    Dele se guardar,
    Sentimento ilhado, morto e amordaçado,
    Volta a incomodar”.

    Me guardei, fiquei ilhado, estava morto e amordaçado e me incomodava, hoje não mais.

    Quantas reflexões farei hoje após a sua excelente Crônica.

    • Angelo Antonio Pavone disse:

      Olá Prof Vitor
      Excelente crônica !!!!! Brilhante abordagem.
      Parece que a nossa Sombra vive à espreita, para em algum momento, sem prévio aviso, voltar a incomodar.
      Parabéns

  2. Clarice keri disse:

    Crônica ótima, você fala com clareza e objetividade de um assunto tão extenso, vou ler mais sobre isso, obrigada.

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