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UM AMIGO

       Em nossa trajetória, pode acontecer de encontrarmos pessoas que marcarão nossas vidas para sempre –  pelo carinho, respeito e amizade. Almas inesquecíveis…

UM AMIGO

Quando conhecemos alguém para um novo relacionamento, apesar da novidade, do desejo, da vontade de descobrir quem é o outro e de deixar que ele descubra quem somos nós, nem tudo são flores. Frequentemente, em quase 100% dos casos, eu diria, vamos nos deparar com “aquele” amigo chato, ciumento, invejoso e, consequentemente, hostil à nossa chegada ao grupo.

Passei por isso nos dois relacionamentos mais importantes de minha vida, além de ter enfrentado a mesma situação até nos namoricos que duraram um mês. O ciúme por parte do namorado, sejamos sinceros!, já é um pé no saco – o ciúme de amigo, então, é um porre completo!

No meu primeiro casamento, a coisa foi um pouco pior: eu era um rapaz de apenas 22 anos, recém ingressado no mundo gay, “verde” de tudo, imaturo em muitas coisas, principalmente na administração de um relacionamento com alguém tão experiente quanto meu parceiro que contava quase 20 anos a mais do que eu. Ele era um homem inteligente, culto, viajado, intelectual e, por isso tudo, exigente. Eu me encantei com tudo isso e me vi plantando bananeira para não dar vexame.

Seus amigos mais chegados moravam todos no Rio de Janeiro. Lembro bem de minha primeira viagem à cidade – e aquela coisa toda de praia, sol, mar, pele dourada, os bares da Farme de Amoedo (point gay carioca em Ipanema) e os corpos esculturais eram novidade para este paulistaninho com bronzeado verde-musgo. Para início de conversa, eu não gostava de nada daquilo: nunca fui fã de praia, muito menos de ficar curtindo o sol na areia branca. Em começo de namoro, porém, a gente faz de tudo para agradar o outro.

Fui recebido com certo deboche pelos amigos de meu companheiro – branquelo, magro, paulistano, eu era um alienígena entre eles, tão branco quando a areia de Ipanema e Copacabana. Via-se o ar de pouco caso estampado na cara daqueles homens, amigos de longa data do meu novo e primeiro namorado (com quem eu acabaria vivendo durante oito anos).  Eram piadinhas de duplo sentido, olhares e risinhos pelas minhas costas ou para que eu pudesse ver mesmo, perguntas venenosas sobre mim ou sobre São Paulo – o tipo de coisa que não agrada a ninguém que “está chegando na turma”. Eu me sentia muito mal no meio daquele grupo.

Houve, contudo, uma exceção.

Ronaldo era mais velho que João (meu companheiro) uns quatro ou cinco anos. Um era tão inteligente e culto quando o outro. Enquanto eu me envolvia com um psiquiatra, seu amigo era geólogo com pós-graduação na França e, se eu não estiver enganado, trabalhava aqui no Brasil em uma grande estatal. Morava no bairro do Humaitá, zona sul do Rio, embora fosse paraibano. Aquariano de janeiro, tinha sempre um sorriso para as pessoas e eu me sentia aliviado quando ele ia nos encontrar na praia. Parecia que nos conhecíamos havia muito tempo. Ronaldo era simpático, divertido, adorava garotos mais jovens e falava um francês muito bom – assim como meu namorado. Nunca senti por parte dele qualquer rejeição à minha pessoa – e como isso é bom quando se é novo em um grupo!

Não me lembro de quanto tempo demorou para que ele viesse se hospedar no apartamento de João, no bairro do Paraíso, em São Paulo. João e eu já morávamos juntos, o apartamento não era grande, mas que prazer tínhamos quando Ronaldo dizia que vinha passar um fim de semana com a gente! Nós nos divertíamos com suas histórias de solteiro em boates, saunas e praias. Havia sempre uma longa história a ser contada de forma charmosa, leve e agradável com a qual João e eu ríamos muito.

Minha afeição por ele crescia na mesma medida que minha rejeição àqueles outros amigos desagradáveis com quem eu às vezes tinha que passar um fim de semana à beira- mar. Pra falar a verdade, só de pensar que eu teria de vê-los, meu fim de semana já murchava. (Verdade seja dita, fui pouquíssimas vezes ao Rio nessa situação.)

Uma dessas viagens de Ronaldo a São Paulo coincidiu com meu aniversário. Já havíamos conversado sobre música antes e ele, apesar de mais velho do que eu, era capaz de gostar tanto de música clássica quanto do rock ou pop de que eu era fã nos anos 80. Gentilmente, lembrou-se do que eu havia lhe dito e me deu de presente um CD do grupo inglês The Mission, cuja faixa “Butterfly on a wheel” eu adorava. Hoje, é impossível que eu a ouça sem me lembrar dele, e é claro que conservo o disco com todo o carinho que ele merece.

Eu trabalhava no jornal O Estado de S. Paulo durante minha faculdade de Letras. Lembro que, numa 6a feira à noite – eu saía às 21h -, João foi sozinho me buscar de carro no trabalho. Ronaldo havia chegado quatro ou cinco horas antes e eles já haviam conversado bastante. Assim que entrei no carro, vi que João tinha uma cara triste, séria, tensa. Perguntei o que havia acontecido e ele me contou: Ronaldo havia contraído o vírus HIV.

A época não era das melhores para se receber essa notícia. O diagnóstico sempre caía como uma bomba! Além do próprio João, agora Ronaldo também era portador do vírus, e isso, obviamente, mexeu muito com sua cabeça e com seu estado de espírito. Entre nós, porém, nunca houve essa conversa. É lógico que ele sabia que João havia me contado, mas eu sempre respeitei sua privacidade.

Houve uma viagem de Ronaldo para São Paulo quando João estava viajando a Manaus a trabalho. Ainda assim, e apesar do ciúme de meu companheiro, Ronaldo ficou lá em casa e conversamos muito. Como é bom conversar com pessoas inteligentes! Lembro que nos primeiros dias não pude lhe dar muita atenção, pois eu fazia faculdade pela manhã e, à tarde, ia para o jornal, onde ficava até as 21h, chegando em casa por volta das 22h. Eu ainda dava plantão nos fins de semana, mas nada impediu que pudéssemos conversar bastante à noite e ele me contou um pouco de seus casos e de sua vida quando jovem na Paraíba.

Em 1993, meu casamento com João estava muito ruim. Ronaldo nos visitou e percebeu tudo como uma pessoa inteligente que era. De novo, coincidiu de ser meu aniversário e, dessa vez, ele me presenteou com os dois volumes de “Memórias do Cárcere”, de Graciliano Ramos. Nem preciso dizer, ainda tenho os livros aqui junto aos outros volumes do grande autor alagoano. São livros muito especiais para mim – por causa do escritor e por ser um presente de Ronaldo.

Em 1994, João e eu enfrentamos um término muito ruim de casamento. Sofremos bastante com a separação e ficamos distantes um do outro por quase dois anos. Nesse tempo, Ronaldo desenvolveu a Aids e João me disse mais tarde que uma irmã de Ronaldo foi quem cuidou dele até o fim no Rio de Janeiro. Doença estúpida!

Recebi a notícia de sua morte com muita tristeza. Fiquei pensando na pessoa boa que ele era, em sua gentileza para com aquele garoto ignorante de tanta coisa que João havia conhecido e que havia trazido para sua casa.

Ainda hoje, penso em Ronaldo com muito carinho, com um afeto que a gente dedica àquelas pessoas que entram em nossas vidas e acrescentam muito a elas.

Ainda hoje, pra falar a verdade, sinto falta de sua amizade.

Espero que, lá do outro lado, ele esteja rodeado de rapazes bonitos que o façam feliz…

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

5 Comments

  1. Baltasar Macias Pereira disse:

    Interessante o conto. Já passei por situações semelhantes e como é ruim sermos ridicularizados e mais ainda quando somos mais jovens e menos maduros. Pena que o seu Amigo Ronaldo tenha morrido. O bom que virou uma Estrela no Céu. Pessoas assim fazem muita falta em nosso Mundo. Bela Crônica. 👍👍

  2. Bernadete disse:

    Lindo!🌟

  3. Roseles Maria Berto disse:

    Que bom que você conheceu pessoa tão
    especial. Tenho certeza que você também teve um lugar significativo na vida dele. Boas lembranças dão cor à vida. Linda sua homenagem.

  4. Também passei por situação quase idêntica! Fiquei pensando e penso até hoje o que leva as pessoas a agirem dessa forma. São donos do mundo? São donos de tudo? Porém, alguns “anéis se foram” e ficaram alguns dedos, um deles tenho uma conexão inexplicável, é uma coisa que não consigo explicar, ou consigo? A conexão que menciono é com o autor do texto. Amo! Tenho certeza que seu amigo querido sempre estará presente em sua vida.Já a música do The Mission, também adoro.

  5. Monica disse:

    Sem exageros, Ronaldo era mesmo esta pessoa descrita com tanta precisão no texto. Privilégio grande em tê-lo conhecido.

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