Estou lendo o terceiro volume da bela e melancólica trilogia “Escravidão”, do Laurentino Gomes (o primeiro e o terceiro volumes foram presentes de amigos). Os três livros são uma pesquisa de fôlego, com a qual o autor nos dá um panorama do que foi o regime escravocrata no Brasil, desde o seu descobrimento, quando as primeiras vítimas foram os indígenas, que aqui estavam, e, depois, os africanos. São páginas que relatam as crueldades e as atrocidades vividas pelos escravizados desde sua captura na África, passando pelos terríveis navios negreiros e chegando aqui para leilões e vendas como se animais fossem.
Bem, é claro que Laurentino nos dá informações interessantes a todo momento. Uma delas, no segundo volume, é “a procissão à luz de velas e de tochas que, em meados de 1713, percorreu as avenidas centrais de Londres, acompanhada por membros da nobreza e do clero, por políticos, escritores, intelectuais e anônimos do povo (…)” para celebrar “o que se acreditava ser um dos eventos mais decisivos na história do comércio daquele ano: a boa fase dos negócios de uma nova companhia dedicada ao tráfico de escravos”. O texto prossegue: “A South Sea Company se tornaria detentora do monopólio de fornecimento de mão de obra cativa pelos 30 anos seguintes para o império colonial espanhol nas Américas”. Em seu quadro de sócios, o rei Felipe V, da Espanha, e a rainha Ana, da Inglaterra. E aí a novidade que me chamou tanto a atenção: como sócios minoritários, gente do calibre do astrônomo e matemático Isaac Newton, e dois escritores bem famosos e respeitados até hoje – Daniel Defoe e Jonathan Swift, autores de clássicos como “Robinson Crusoé” e “As viagens de Gulliver”, respectivamente. A moçadinha que implica com Monteiro Lobato não deve saber disso.
Nesse terceiro volume, subintitulado “Da Independência do Brasil à Lei Áurea”, Laurentino vai nos contando todo o conflito de interesses entre os abolicionistas e os grandes proprietários de terras (e de escravos, obviamente) que tomou conta da política do País. Houve, é lógico, espaço para hipocrisia, corrupção, tráfico ilegal de humanos (quando já havia uma lei que proibia esse terrível comércio), favorecimentos, compadrios, falcatruas, propinas e todas aquelas coisas que conhecemos tão bem na formação do Brasil.
“De todos os problemas brasileiros na Independência, a escravidão foi o mais camuflado e mal resolvido. Serviu também para expor uma estranha contradição no pensamento dos homens mais revolucionários da época. Os manifestos, documentos e discursos falavam em liberdade, direitos para todos, participação popular nas decisões, mas seus autores conviviam naturalmente com a escravidão, como se a defesa dessas ideias não dissesse respeito aos negros”, escreve Laurentino Gomes. E, nessa turma, inclui-se o próprio Imperador, D. Pedro I!
Pressionado pela Inglaterra, agora tomada por uma onda abolicionista, o Brasil fazia promessas de cessar o tráfico negreiro. Muitos tratados internacionais foram assinados, mas nunca cumpridos. O governo britânico afirmava que só reconheceria a independência do Brasil se parássemos com o vergonhoso tráfico. Como os acordos nunca eram respeitados, cunhou-se a expressão famosa até hoje: era tudo para “inglês ver”.
Sobre um dos tais acordos, o de 1826, o deputado Raimundo José da Cunha Matos, por exemplo, expunha suas razões para discordar de seu cumprimento. Segundo o nobre político, acabar com o tráfico era “um insulto à honra, aos interesses, à dignidade, à Independência e à soberania da nação brasileira”, porque “ataca a lei fundamental do Império, prejudica enormemente o comércio nacional; arruína a agricultura, vital para a existência das pessoas; aniquila a navegação; desfere um golpe cruel nas receitas do Estado, além de ser prematuro e extemporâneo”. O ilustre deputado, então, concluía sua defesa da escravidão com um argumento que dispensa adjetivos: “Os cristãos que compram escravos estão, na verdade, livrando-os da morte ou de algum destino nas selvas africanas mais cruel do que a escravidão, como o canibalismo, a idolatria e a homossexualidade” – como se isso justificasse todo o horror de que os negros eram vítimas.
Fica evidente que o “Brasil livre de Portugal” não dizia respeito aos escravizados – estes continuariam cativos. A hipocrisia por parte dos ditos patriotas que não viam razões para libertar os negros da sua condição sub-humana. Um novo país para alguns, um país antigo para outros.
Isso tudo me fez lembrar do escritor norueguês Dag Oisten Endsjo que, em seu livro “Sexo e religião – do baile de virgens ao sexo sagrado homossexual”, afirma: “Um grande contingente de homens homossexuais não foi libertado dos campos de concentração onde se encontravam; em vez disso, os aliados os enviaram direto para a prisão para cumprirem o restante da pena a que tinham sido condenados pelos nazistas. Os homossexuais não eram o único grupo a quem os nazistas perseguiam, mas foram os únicos cuja perseguição foi legitimada pelos aliados ao fim da II Guerra Mundial”.
Um novo mundo… mas não para todos!
3 Comments
Olá Prof Vitor
Excelente crônica. Eu li os três volumes de “Escravidão” – ,Laurentino Gomes. É uma narrativa chocante. O argumento dos contra abolicionistas é nojento: estamos salvando os negros mantendo-os escravos. E até hoje a abolição não se condolidou. Esses livros deveriam ser leitura obrigatória no Ensino Médio.
Espero que a sua excelente crônica sirva de estimulo para a leitura de Escravidão
Parabéns.
Professor, não tive a oportunidade de ler a trilogia “Escravidão”, espero que em breve o faça. Que estes livros sirvam de inspiração para uma leitura e aprendizado dos mais jovens, também. Espírito Santo do Pinhal cidade onde resido, temos registrado que em 1887 tínhamos aproximadamente 1035 escravos – a maioria deles trabalhavam nas lavouras de café, história interessante. A alforria aqui em Espírito Santo do Pinhal foi acontecendo aos poucos: a primeira ocorreu em julho de 1886, a escrava Venturosa de 25 anos foi alforriada. Aos poucos os escravos iam sendo alforriados, até que em 16 de abril de 1888 todos foram libertados. Pelos registros, Espírito Santo do Pinhal foi a segunda cidade do Brasil a libertar os escravos.
Parabéns pela excelente crônica, um assunto triste e delicado, uma mancha negra na história da humanidade que precisa ser conhecida, estudada e entendida, quem sabe, extinta, obrigada.