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UMA AMIGA

Os raros e fiéis leitores deste blog sabem que, nele, escrevo textos relacionados ao mundo gay. Pessoas, fatos, lugares, livros, músicas, filmes etc. Tudo o que estiver, de alguma forma, relacionado a esse universo. Bem, hoje vou escrever sobre uma pessoa querida, heterossexual, que nos deixou há pouquíssimo tempo, mas que era mais do que simpatizante – era uma grande amiga.

Conheci Fátima quando nós dois trabalhávamos no jornal O Estado de S. Paulo, ali na Marginal Tietê, Bairro do Limão, zona norte da cidade. Ela já era jornalista formada pela ECA-USP e fazia sua pós-graduação na mesma universidade. Trabalhava no Arquivo do jornal e zelava como ninguém pelas pastas repletas de textos e fotos que eram, naquela época, requisitadas pelas diversas editorias, dependendo das matérias a serem publicadas.

Na verdade, conversamos num domingo em que ambos estávamos de plantão, casualmente, sem um motivo aparente, porque nos encontramos na redação. Era o ano de 1987 ou 1988, e nenhum de nós poderia suspeitar de que uma amizade de mais de 30 nascia ali.

Fátima era bastante inteligente, uma pesquisadora de mão cheia em sua área de atuação (Comunicação) e uma pessoa com uma memória privilegiada, sobretudo com relação à música, TV e cinema. Nossa amizade se fortaleceu porque tínhamos uma amiga em comum, no mesmo jornal – Mónica Paula. Fátima era a caçula de três irmãos. Quando nos conhecemos, ela cuidava da mãe, que estava doente, com muita dedicação e carinho. D. Dora veio a falecer pouco tempo depois. Eu não a conheci.

Bem, foi Mônica quem trouxe Fátima à minha casa pela primeira vez. Nossa turma tinha (como tem) o hábito de longos papos noite adentro, regados a muita comida e muita música, alguns filmes de vez em quando, e muita risada no meu sofá. Aquilo foi, de alguma forma, uma novidade para nossa nova amiga, que não tinha o costume de passar noites fora de casa, enquanto a mãe era viva.

Lembro que, nessa primeira vez, Fátima me perguntou, de modo meio acanhado, se eu gostava de Disco Music. Mal sabia ela onde havia caído! Claro que eu gostava! Pediu para que eu pusesse o clipe de “Don´t let me be misunderstood”, do Santa Esmeralda. Nós não sabíamos, mas aquela música, aquela versão, tinha um significado especial para ela: era a música que ela dançava com a mãe em casa, uma forma de fazerem exercício juntas. Fatima me ensinou a letra da música, como viria a me ensinar a letra de outras canções no futuro. (Uma vez, dormiu aqui em casa, de sábado para domingo. Quando acordei, ela já havia ido embora e deixado a letra de “Do you know the way to San Jose?”, que eu adorava, escrita numa folha de sulfite em cima de minha escrivaninha. Isso, muito antes das facilidades da internet. Ela também havia dado aulas de inglês na juventude.)

O tempo foi passando e nossa amizade se solidificou. Depois que perdeu a mãe, Fátima saiu do ABC e veio ser minha vizinha, veio morar no mesmo bairro em que eu moro, e suas vindas às nossas reuniões se tornaram uma constante.

Mais velha do que nós, contava-nos casos e fatos de sua infância nos anos 60 e sua juventude na década seguinte: as músicas de que gostava, os filmes e as novelas que ela havia visto com a mãe, a USP no fim dos anos 70 e começo dos anos 80… a contextualização de tudo aquilo com personagens e datas. Apresentava-nos coisas que não conhecíamos até então. Do pessoal mais moderninho, ela gostava muito de “Tears for Fears” e de George Michael. Lembro bem!

Apesar de heterossexual, Fátima mergulhou no universo gay da turma. Eu estava casado na época, então saía pouco e reunia o pessoal aqui em casa para as nossas noitadas. As músicas Disco sempre rolavam. Nossa amiga gostava de ABBA, Santa Esmeralda e KC and The Sunshine Band. Contava-nos do impacto que a música “That´s the way (I like it)” havia lhe causado em 1975, pois, no refrão, o cantor simula um som de quem está transando.

Como esquecer que, em abril de1995, fui com ela ao extinto Olímpia, ali no bairro da Lapa, ver um show do KC, uma verdadeira viagem no tempo? Aquelas músicas todas que ouvíamos nos LPs estavam ali, sendo tocadas ao vivo e em cores pra gente… e minha amiga viajando com todas elas.

Fátima era de uma fidelidade a toda prova. Superficialidade não era seu lema. Ela, contudo, era passional, temperamento difícil, às vezes, que ela explicava assim: “Sou aquariana com ascendente em Sagitário. O que você acha?”. Tinha algumas convicções e não abria mão delas. Adorava os Monkees, os Beatles e uma série de outras bandas e cantores e cantoras dos anos 60 e 70. Era fã das novelas de Ivani Ribeiro. Lia muito os grandes teóricos da Comunicação e do Jornalismo, área em que defendeu um mestrado e um doutorado.

Fátima dizia que o seriado Super Gatas – das velhinhas sapecas que moravam em Miami – era um pouco doloroso pra ela, pois costumava ver os episódios nos anos 80 acompanhada por sua mãe. (Hoje, entendo exatamente o que ela dizia: depois que minha mãe faleceu, também tenho tido dificuldades para ver a série.) Virou fã de “Will & Grace” aqui em casa. Vimos muitos, muitos episódios juntos. Ela ria de chorar e pedia que eu reprisasse alguns – sobretudo aqueles em que a Cher e o Barry Manilow aparecem como convidados. Um de seus filmes prediletos era “Para o resto de nossas vidas”, (“Peter´s Friends”, que ela chamava de “Vitor´s Friends”).

Palmeirense roxa e apaixonada, sempre me mandava uma foto quando o time contratava um jogador bonitão. Acompanhava todos os jogos da equipe – por TV ou por rádio – e sofria com as derrotas e ficava feliz com as vitórias. Esse mesmo fanatismo, ela demonstrava pela Seleção Brasileira: vibrava com as Copas conquistadas e dizia que a vitória sobre a Itália, em 1994, era pra vingar a derrota e a tristeza do pai dela, seu José, em 1982.

Nas datas mais marcantes – como aniversário e Natal, havia sempre um presente dela pra gente. Se não nos víssemos, ela deixava a caixa ou a bonita sacola na minha portaria, cujo conteúdo sempre trazia um livro, uma camiseta, algum enfeite pra casa ou algum presente como uma toalha de mesa, copos, talheres ou pratos de sobremesa. Está tudo aqui, tudo guardado com o mesmo carinho com que, eu sei!, ela escolheu e comprou.

Nos últimos tempos, Fátima estava mais reclusa. Algumas doenças foram se manifestando, a idade foi chegando e ela ficava mais em casa, apesar de ter sido uma pessoa que adorava passear e ir a livrarias, cafés, lojas e cinemas. Nós nos encontrávamos na padaria aqui do bairro. Ela sempre se sentava ao balcão, tomando sua sopa ou comendo algum pedaço de pizza. Eu entrava pra comprar alguma coisa e nosso papo começava – sobre o Palmeiras, sobre algum livro, sobre algum filme, sobre nossas vidas.

Fátima passou vários Natais e vários Primeiros de Janeiro com minha família. Meus irmãos e minha mãe gostavam dela e minha amiga jamais chegou à casa de alguém sem um presentinho, sem um doce ou um salgado que fosse.

Sua morte, no dia 24 de novembro de 2022, aos 66 anos, coincidiu com a estreia da Seleção Brasileira na Copa do Qatar. Temos certeza de que ela estaria acompanhando todos os jogos do Brasil com a mesma paixão de sempre.

Nos últimos anos, ela sempre chamava a mim e à Mônica para comermos no dia 03 de fevereiro ou perto dele – era seu aniversário e a gente já sabia que ia rolar um encontro.

Esquisito, estranho e dolorido não chegar perto dela no balcão e convidar: “Fafá, reunião lá em casa, no próximo sábado, tá bom? Esperamos você”. E ela: “Tá legal. Eu levo alguns doces pra gente”.

Ainda é muito estranho passar em frente ao prédio em que ela morava e saber que minha amiga não está mais lá. Ainda é automático que eu passe em frente à padaria (ou entre nela) e procure por Fátima como eu fiz nesses mais de 20 anos em que fomos vizinhos. Por muito tempo, ainda acho que farei isso inadvertidamente. Fica a saudade de momentos muito bacanas… Tanta coisa que daria pra contar aqui!

Que você esteja bem, minha amiga! Você foi e é uma das irmãs que, biologicamente, não tive.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

5 Comments

  1. Foi um privilégio ter conhecido a Fátima, uma memória fantástica, apreciadora da Disco Music, também! Trocamos algumas ideias sobre músicas, conjuntos, principalmente do grupo que aprecio muito, o CHIC. Ambos aquarianos, pelo pouco que a conheci, tínhamos várias coisas em comum. Há tempos não vejo meus amigos queridos, saudade imensa, Fátima estará na memória. A Pandemia fez com que a minha ausência acontecesse, também, e espero que em poucos meses possamos nos reencontrar.

  2. Baltasar Pereira disse:

    Bela Homenagem a Fátima e bem merecida.
    Tinha um conhecimento muito bom sobre vários assuntos e o melhor explicava e falava de maneira bem coloquial pata a entendermos.
    Uma vez fui com ela assistir uma Homenagem à Mansueto e conheci a obra dele. Gostei e muito da Homenagem.
    Realmente estranho esta Partida repentina.
    Que Deus a Ampare nesta Nova Jornada.
    👏👏👏👏

  3. Ricardo Cano disse:

    Tocante…bela homenagem 🌈🙏

  4. Aurélio disse:

    Belíssimo registro em homenagem à Fátima. Somente uma pessoa de tamanha sensibilidade poderia confeccionar algo tão tocante. Certamente, os momentos que passamos com ela estão em quadros bonitos nas paredes de nossas memórias.

  5. Clarice keri disse:

    Homenagem linda e emocionante, tenho certeza que a Fátima está feliz com ela.

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