

A senhora sobe no ônibus com dificuldade, posso ver de onde estou sentado. Ela passa a catraca e vem se sentar ao meu lado. Ajeita sua bolsa e sua sacola sobre as pernas e me cumprimenta com um sorriso doce. Correspondo ao seu “boa tarde” e olho pela janela o trânsito naquela tarde fria e cinzenta com cara da antiga São Paulo.
Ela puxa conversa, e compreendo que se sentou ao meu lado com a intenção de fazer isso mesmo:
– Desculpe, mas vi a estampa na sua camiseta e queria conversar com o senhor um pouco…
Eu mesmo nem me lembro de que estampa ela fala. Olho e vejo que, do meu lado esquerdo do peito, bem em cima do coração, há uma estampa mediana de uma bandeira LGBTQ+, a bandeirinha do arco-íris. Camiseta que ganhei de um amigo.
-Ah, sim…
– O senhor me desculpe por incomodá-lo, mas é que gostaria de lhe fazer uma pergunta… posso?
Digo que sim, que ela pode me perguntar o que quiser. Olho mais atentamente: é uma senhora de seus 60 e poucos anos de idade, muito simples, com um vestido azul e uma blusa da mesma cor, porém mais clara, sobre esse vestido. Olhos também azuis, muito profundos. Os cabelos pretos (obviamente tingidos, que lhe dão um ar bem cuidado) e presos, óculos de aros finos, brincos combinando com um colar, o que lhe dá uma certa elegância e delicadeza.
– O senhor é gay?
Com um sorriso, digo que sim, que sou gay, pois a camiseta me entrega… mas digo também que não sou militante; quando muito participei de algumas Paradas na Paulista e só.
– Quantos anos o senhor tem?
Falo minha idade e ela me faz um elogio. É uma senhora simpática que consegue estabelecer uma conversa com um estranho sem parecer intrusa ou desagradável. Como ignorá-la?
– Tenho um único filho… e ele também é gay. Contou para mim e para meu marido ontem. Ainda estou tentando aceitar, o senhor sabe? Eu nunca imaginei que ele pudesse gostar de homens. Desculpe, mas foi um choque para mim e para meu marido. Ficamos sem saber o que fazer quando ele nos contou. Não tenho ninguém com quem conversar sobre isso.
Pergunto se o rapaz mora com eles.
– Mora, sim. Diz que vai se mudar. Diz que conheceu um homem mais velho do que ele – meu filho tem 23 anos – e estão apaixonados. Tudo isso é tão estranho para mim e meu marido! Sou uma pessoa simples, o senhor vê. Meu marido também. Não temos luxo, mas demos a ele o que podíamos. Agora, diz que vai embora, vai se mudar e nos deixar. Estou muito triste.
Argumento que o moço está indo atrás do amor e da felicidade dele. Se o que os dois sentem um pelo outro é sincero, devem mesmo ficar juntos. A vida é tão curta! Ela não pensa assim?
– Penso, penso, sim, moço. Mas é que eu tinha tantos planos para ele! Uma moça bonita, direita; um casamento na igreja e no civil; uma festa para todos os parentes e amigos. Netos! Ah, como eu queria que ele me desse netos! Pelo menos uns três…
Como é filho único, sua única esperança de ter netos seria ele. Digo que ele e o namorado (sinto que a palavra é um pouco forte para ela) podem adotar uma criança, ou mesmo ter um filho por uma inseminação artificial. A medicina evoluiu muito nesse sentido…
– Ah, não é a mesma coisa! Não é mesmo! Meu marido está muito triste. Não come nada desde ontem. Não fala com ninguém. Um clima tão ruim lá em casa. Só o senhor vendo… e o vazio que vai ficar quando meu filho sair de lá? Meu Deus!
Rebato que, se ele se casasse com uma moça, também sairia de casa…
– Mas seria diferente… – ela fala para si mesma.
Por alguns momentos, nossa conversa é interrompida. Ela ajeita a blusa sobre o peito e a sacola sobre as pernas. Olha pra frente, pensativa, distante. E eu fico pensativo também. Olho pela janela: a noite começa a cair, a noite com seus segredos e mistérios. Penso na senhora ao meu lado. Uma mulher simples, de olhos muito azuis e doces, que, em momento algum, pensou que aquela conversa poderia me aborrecer ou me magoar. Não me magoou, nem me aborreceu, mas me fez pensar em minha própria história, em tudo o que eu mesmo enfrentei quando me apaixonei pela primeira vez e tive de guardar aquele amor do qual ninguém queria saber.
Pensei naqueles dias distantes da minha juventude. Pensei na solidão que senti nas ruas desta mesma cidade; ruas que eu percorria, adiando minha volta para casa. Sem rumo, sem norte, apenas vagando entre as pessoas que voltavam do trabalho nos ônibus, metrôs, trens e carros. A garoa fina e fria que caía e que, de modo muito estranho, me fazia bem. As extintas livrarias que me serviam de refúgio e de abrigo. As sessões de cinema das 8h ou das 10h da noite, filmes nem sempre bons. Um doce em alguma confeitaria, uma caminhada a mais pela cidade, uma parada em alguma loja – tudo para adiar a volta pra casa depois do expediente.
A senhora torna a falar comigo, como se voltasse de um transe:
– Já vou descer. Tenha uma boa noite. O senhor não sabe, mas me ajudou bastante, viu? Obrigada.
Sorrio para ela e digo que foi um prazer “conhecê-la”. Ela se despede e se levanta – descerá no próximo ponto. Volto meus olhos para a janela. Prédios, carros e semáforos permanecem indiferentes a tudo o que se possa sentir. Ao longe, o sino de uma igreja chama os fiéis para uma missa noturna. Vejo o começo de garoa no vidro da janela.
Como posso ter ajudado aquela senhora? Não faço a mínima ideia. Sou apenas um homem com uma camiseta estampada, cujo assento ao lado continua vago – nem sei se por opção ou por destino.
2 Comments
Professor, a ajuda foi dada para senhora que sentou ao seu lado de uma forma doce e carinhosa, era isso que ela precisava ouvir! Ela precisava conhecer uma pessoa com a mesma orientação do filho. Você a ajudou, e muito.
Olá Prof Vitor
Crônica muito bela e sensível. Palavras por mais simples podem produzir efeitos transformsdores.
Em determinados momentos ocorrem fatos que nos transportam para mundos distantes em segundos. São as “voltas” que o mundo dá.
Parabéns pela crônica