DOIS ESCRITORES E UMA TRAGÉDIA
25 de abril, 2025
CARTAS – O OUTRO LADO DOS ESCRITORES 2
9 de maio, 2025
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CARTAS – O OUTRO LADO DOS ESCRITORES 1

Prezado leitor,

Venho por meio destas mal traçadas linhas lembrá-lo de que houve um tempo em que as cartas eram um meio muito explorado pelas pessoas.

Engana-se quem acha que o e-mail e o WhatsApp são herança das cartas. Na verdade, são filhos diretos do telegrama, porque querem comunicar com rapidez, de forma sucinta, sem muita profundidade e sem muita elaboração. Eles têm pressa, precisam chegar logo ao destinatário, precisam derrotar o tempo que passa. São descartáveis e fugazes – como muita coisa no mundo contemporâneo.

As cartas eram diferentes. Quem se sentava para escrever uma carta fazia isso sabendo que muita coisa podia acontecer entre sua postagem e a chegada ao destinatário – inclusive que a carta podia não chegar até ele, perdendo-se no caminho e deixando um vácuo naquela desejada correspondência.

Escritas à mão ou (mais tarde) datilografadas, as cartas despertavam a ansiedade daqueles que se correspondiam e eram um retrato dos sentimentos mais variados como amor, ódio, tristeza, mágoa, felicidade, paixão, alegria, regozijo, prazer, angústia, ciúme etc.

Ler uma carta é, muitas vezes, conhecer um pouco mais o seu autor, sua visão de mundo, seus desejos, seu estado de espírito, sua vida. Uma carta pode ser um raio X da alma do remetente e (por que não?) do destinatário também.

E a extensão delas? Isso dependia do assunto que se abordava e do autor que se punha pacientemente a relatar o que desejava ao destinatário.

Sou um fã de cartas. Quem sentiu o prazer de receber aquele envelope com bordas em verde e amarelo (no caso das cartas nacionais) ou em azul e vermelho (no caso das cartas internacionais) sabe do que estou falando. Quem ia ao correio para enviar sua carta e ficava torcendo para que ela chegasse logo (e a resposta viesse mais rapidamente ainda) vai me entender. Eram outros tempos – mais românticos, talvez…

Durante muitos anos, ensinei a redação de cartas para vestibulandos. Em uma ocasião, fui surpreendido e tive a comprovação de que, para as gerações atuais, as cartas não fazem qualquer sentido: um aluno, aproveitando o exercício que eu propusera em classe, escreveu uma carta para sua avó. Na semana seguinte, veio me perguntar: “Professor, como é que eu faço agora para a carta chegar até a casa dela?”. Ele não tinha a mínima noção de que existia uma coisa chamada “correio”.

Nesta série, vou reproduzir cartas de alguns escritores conhecidos mais por seus livros e histórias. Farei um breve comentário, sempre tentando manter os holofotes na carta e no escritor escolhidos. Espero conduzir você, leitor, a uma viagem agradável, envolvente e mágica. Cartas podem mesmo ser mágicas. E são!

Sem mais para o momento, cordialmente,

Vítor F. Galvão.

GRACILIANO RAMOS A HELOÍSA DE MEDEIROS

Graciliano Ramos (1892-1953) é um dos maiores escritores da literatura brasileira e o grande nome da chamada Literatura do Nordeste. Seus romances, como “Vidas Secas” e “São Bernardo”, por exemplo, retrataram as desigualdades e injustiças naquela região do País, utilizando um estilo direto, sucinto e econômico com as palavras. Homem bastante fechado e genioso, Graciliano ficou viúvo cedo e apaixonou-se por Heloísa Leite de Medeiros.

Eleito prefeito de Palmeira dos Índios (Alagoas), em 7 de outubro de 1927, o escritor conheceu Heloísa no Natal do mesmo ano, vindo a se casar com ela, em Maceió, menos de dois meses depois, em 16 de fevereiro de 1928.

Quanto maior o silêncio do ser amado, maior a ansiedade de quem ama! Embora as respostas de Heloísa nunca tenham sido publicadas, Graciliano nos dá a ideia de um certo resguardo por parte de sua futura esposa. Na carta abaixo, a prova do que o amor é capaz: o escritor deixa de lado seu estilo reservado e, com os exageros próprios da paixão, fala de seu interesse e sofrimento por aquela que viria a ser sua segunda esposa e com quem ficaria até o fim da vida.

Em se tratando de Graciliano Ramos, essa exacerbação romântica é digna de nota!

Palmeira dos Índios, 16 de janeiro de 1928.

Heloísa, chegaram-me as duas linhas e meia que me escreveste. Pareceram-me feitas por uma senhora muito séria, muito séria! Muito antiga, muito devota, dessas que deitam água benta na tinta.

Tanta gravidade, tanta medida, só vejo em documentos oficiais. Até sinto desejo de começar esta carta assim: “Exma. Sra.: tenho a honra de comunicar a V. Exa. Etc.”.

Onze palavras! Imaginas o que um indivíduo experimenta ao receber onze palavras da criatura que lhe tira o sono? Não imaginas. E sabes o que vem a ser isso de passar horas da noite acordado, sonhando coisas absurdas? Não sabes. Pois eu te conto.

Sento-me à banca, levado por um velho hábito, olho com rancor uma folha de papel, que teima em conservar-se branca, penso que o Natal é uma festa deliciosa. Os bazares, a delegacia de polícia, a procissão de Nossa Senhora do Amparo… E depois o jogo dos disparates, excelente jogo. “Iaiá caiu no poço”. Ora o poço! Quem caiu no poço fui eu.

Principio uma carta que devia ter escrito há três meses, não posso concluí-la. Fumo cigarros sem conta, olhando um livro aberto, que não leio. Dança-me na cabeça uma chusma de ideias desencontradas. Entre elas, tenaz, surge a lembrança de uma criaturinha a quem eu disse aqui em casa, depois da prisão do vigário, nem sei que tolices.

Apaga-se a luz, deito-me. O sono anda longe. Que vieste fazer em Palmeira? Por que não te deixaste ficar onde estavas?

Não consigo dormir. O nordeste, lá fora, varre os telhados. Na escuridão, vejo distintamente essa mancha que tens no olho direito e penso em certa conversa de cinco minutos, à janela do reverendo. Por que me falaste daquela forma? Desejei que o teto caísse e nos matasse a todos.

Andei criando fantasmas. Vi dentro de mim outra muito diferente da que encontrei naquele dia.

Por que me quiseste? Deram-te conselhos? Por que apareceste mudada em 24 horas? Eu te procurei porque endoideci por tua causa quando te vi pela primeira vez.

É necessário que isto acabe logo. Tenho raiva de ti, meu amor.

Fui visitar o padre Macedo. Falou-me de ti, mas o que disse foi vago, confuso, diante de dez pessoas. É triste que, para ter notícias tuas, minha filha, eu as ouça em público. Foram minhas irmãs que me disseram o dia do teu aniversário e me deram o teu endereço.

Tinhas razão quando afirmaste que entre nós não havia nada. Muito me fazes sofrer.

É preciso que tenhas confiança em mim, que me escrevas cartas extensas, que me abras largamente as portas da tua alma.

Beijo-te as mãos, meu amor.

Recomendo-me aos teus, com especialidade à dona Lili, que vai ser minha sogra, diz ela. Acho-a boa demais para sogra.

Amo-te muito. Espero que ainda venhas a gostar de mim um pouco.

Teu Graciliano

In: RAMOS, G. Cartas de Amor a Heloísa, 1ª edição, Rio de Janeiro, 1994, pp 29-34.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. Baltasar Pereira disse:

    Não conhecia este lado do escritor , Graciliano Ramos,apaixonado conforme demonstra na carta que enviou a sua futura segunda esposa e como é bom ter visto este outro lado dele.
    Realmente,na época das cartas,quando escriavíamos para alguém, dependendo do que gostaríamos como resposta,a ansiedade era tal que contávamos os dias nas mãos.
    Hoje não se tem mais isto ,que é muito triste,pois os jovens não terão idéia de como nos sentíamos ao escrever uma carta e se fosse de amor,com certeza seria ridícula,mas não seria carta de amor se assim não o fosse,como disse um famoso Poeta Português.
    Com certeza deverão vir outras crônicas tão gostosas de se ler como esta.

  2. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Deliciosa crônica. As cartas, que emoção escrevê-las e maior ainda recebê-las. Outros tempos.
    Quem diria, Graciano, de Memórias do Cárcere, apaixonado!!!!!.
    As paixões nos fazem cometer desatinos
    Parabéns!!!!!

  3. Delícia de Crônica! Que saudades de receber e escrever cartas – escrevi muitas! Quem não escreveu? Uma exploração deliciosa que aos poucos foi acabando. Graciliano sempre apaixonado.

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