Fernando Sabino foi apresentado a Clarice Lispector por Rubem Braga. Surgiu daí uma grande amizade entre os dois, pautada pela admiração e pelo respeito mútuos, que duraria até 1977, quando Clarice morreu. Nas palavras de Fernando, “nós nos tornamos amigos – só não digo “inseparáveis”, porque outras viagens nos separaram, cada um para o seu lado. Mas a amizade continuou, através das cartas ‘perto do coração’, de 1946 a 1969, com uma frequência só interrompida quando nos encontrávamos ambos no Rio”.
Na carta abaixo, a última da série “O outro lado dos escritores”, Fernando Sabino escreve a Clarice pedindo desculpas à amiga pelo silêncio e pela ausência de notícias. Clarice estava vivendo nos Estados Unidos; Fernando, no Brasil. Em tempos de interurbanos caríssimos, o correio era a melhor alternativa, mas, muitas vezes, as pessoas tinham de aguardar durante muito tempo por uma resposta. Fernando também fala do (eterno) problema na relação escritor-editor e alude ao fato de que, se publicar um livro estando aqui já era difícil, estando no exterior a coisa se complicava ainda mais.
Por outro lado, o carinho entre eles é nítido – carinho essencial entre duas pessoas que se consideram grandes amigas.
Quero agradecer aos leitores que, fiéis e pacientes, leram todas as cartas que reproduzi neste blog. Foi uma “viagem” prazerosa para mim – e espero que tenha sido para vocês, também. Um privilégio poder dividir com amigos queridos esse gênero que tanto aprecio e que, infelizmente, está caindo em desuso. Já não se escrevem mais cartas.
Tudo muda. Tudo passa. Tudo chega a um fim.
Fernando Sabino (1923-2004) nasceu em Belo Horizonte; foi escritor, jornalista e editor. Na juventude, escrevia para revista mineira Argus, na qual participava de concursos de contos, que vencia com frequência. Foi nadador do Minas Tênis Clube, onde bateu diversos recordes de nado de costas, tornando-se campeão sul-americano dessa modalidade em 1939. No mesmo ano, ganhou o segundo lugar na Maratona de Português e Gramática Histórica. Começou a cursar a faculdade de Direito em 1940. Depois de formado, morou dois anos em Nova York, exercendo função burocrática do consulado brasileiro no Estados Unidos. Suas principais obras são “O encontro marcado”, “O homem nu”, Deixa o Alfredo falar”, “O grande mentecapto”, “A falta que ela me faz” e centenas de crônicas publicadas nos principais jornais e revistas do País.
Clarice Lispector (1920-1977) nasceu em Chechelnyk, na Ucrânia, tendo vindo com a família para o Brasil em 1922. De família judaica russa, Clarice naturalizou-se brasileira e aqui notabilizou-se como uma das escritoras mais importantes do país no século XX. Escreveu romances, contos e ensaios, além de ter trabalhado no jornalismo como entrevistadora e tradutora. Seus personagens, embora comuns, frequentemente atravessam algum processo de epifania (revelação) que transforma tanto suas vidas quanto a eles próprios. Alguns de seus livros mais famosos são “Laços de Família” (contos), “Perto do Coração Selvagem”, “A Paixão Segundo G.H” e “A Hora da Estrela” (romances). Foi casada com o diplomata Maury Gurgel Valente, pai dos dois filhos da escritora, Pedro e Paulo.
Rio, 16 de fevereiro de 1959.
Clarice,
Acabo de receber seu grito de amizade e respondo logo: alô, Clarice, aqui estou também, seu melhor amigo, sempre me lembrando de você com saudade. Acontece comigo uma incapacidade fundamental de escrever cartas e ainda mais as cartas que eu gostaria de escrever, ou a que devia te escrever agora. Em vez disso, sou obrigado a escrever bobagens diariamente e vou me tomando de pavor da palavra escrita. Mas não tem importância, você mesma não disse que o tempo se conta em anos? Ainda agora estou aproveitando dois minutos de intervalo entre duas crônicas. Veio-me uma tentação de converter esta carta em assunto de crônica, se outro fosse seu conteúdo, com notícias e fatos. Mas, no nosso caso, ou seja, na nossa correspondência interrompida, vem passando uma espécie de complexo de culpa, à falta de outro nome, que carrego pelos problemas que seus livros suscitaram por aqui, dos quais você foi informada e que, apesar do meu empenho, não fui capaz de resolver da maneira que mais me satisfizesse.
O romance com o Ênio, você soube a onda que criou a ameaça de devolução: foi uma gota d´água que fez transbordar o ressentimento dos escritores de modo geral contra o tratamento dispensado pelos editores. Estão em crise e a coisa foi para os jornais, movimentos de parte a parte em defesa dos dois grupos – acabaram, como sempre, metendo o governo no meio só para atrapalhar. Nessa briga, eu preferi não me meter.
Quanto ao romance, propriamente, o ênio, cujo nome passo a escrever com letra minúscula, até que o publique, me disse que sairá em meados deste ano, logo que você devolver os originais, conforme comunicou a você. O de contos, as provas devem ter sido enviadas, você recebeu? É fácil calcular as dificuldades que você vem tendo assim de longe, pelas que a gente já tem aqui por perto mesmo.
Enquanto isso, li com Érico Veríssimo seu conto de anã, que é de estarrecer, de tão bom. Soube que sairá na revista Senhor. E soube também que você tem escrito outras coisas boas, por que não me manda? Apesar dos pesares, espero que você continue contando comigo; se ainda for possível, me dê mais um crédito de confiança.
Quanto a mim, estou literariamente paralisado: muita coisa aconteceu na minha vida, coisa que pelo menos poderá me fornecer bom assunto futuramente, mas agora não, mal tenho tempo de viver e enfrentar. É o nosso consolo… Mas eu quero muito bem a você, Clarice, conte comigo sempre, e esta carta foi mesmo só pra dizer “alô” como a sua.
Me escreva mais, por favor. E aceite o saudoso abraço deste seu amigo
Fernando
Depois te escrevo mais, uma carta realmente, contando coisas, ou não dizendo nada, pelo simples consolo, ainda que à distância, de te saber existente e convivermos.
Outro abraço afetuoso do
Fernando
In: SABINO, Fernando – Cartas perto do coração – Fernando Sabino e Clarice Lispector. 9ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Record, 2024, pp. 227-228.
3 Comments
Perfeito, muito bom ler algo que nos enriquece de alguma forma, mesmo que não fosse uma carta trocada por conhecidos, o fato de ser bem escrita e, ser uma constatação de uma amizade tão bonita, é maravilhoso. Obrigada.
Professor, usando as suas palavras, foi sim, foi uma “viagem” de conhecimento e muita riqueza, creio que escrever mais seria insuficiente. Esta última carta da série “O Outro Lado dos Escritores”, nos mostra o carinho e respeito entre Clarice e Fernando, uma amizade forte e sólida. Obrigado por dividir momentos prazerosos de leitura.
Olá Prof Vitor
É realmente uma pena o encerramento de “O outro lado dos escritores”. Neste tempo fomos contemplados com cartas deliciosas em estilo, carinho e respeito, além é claro de uma gramática fantástica. Parabéns pelo tema e pela seleção.