CARTAS – O OUTRO LADO DOS ESCRITORES 7
13 de junho, 2025
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CARTAS – O OUTRO LADO DOS ESCRITORES 8

Em 1938, Vinicius de Moraes, então um moço bonito da zona sul carioca, ganhou uma bolsa do British Council para estudar literatura e língua inglesas na Universidade de Oxford.

O mundo estava prestes a entrar num conflito terrível – a Segunda Guerra Mundial. Na carta abaixo, Vinicius relata ao poeta e amigo Manuel Bandeira toda a tensão que envolveu o povo britânico, bem como a falsa impressão de que Hitler deixaria a Inglaterra e o resto da Europa em paz após o Pacto de Munique.

Não é difícil imaginar como tudo aquilo deve ter impressionado um jovem estudante que, em terras estrangeiras, vinha de outra realidade. Acostumado ao sol, ao mar e à tranquilidade do Rio de Janeiro, Vinicius se viu em uma situação tensa e assustadora… Mal sabia ele o que estava por vir!   

       

Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes (1913 – 1980), mais conhecido como Vinicius de Moraes, foi um poeta, dramaturgo, jornalista, diplomata, cantor e compositor brasileiro.

Poeta essencialmente lírico, o “Poetinha”, apelido que lhe teria sido atribuído por Tom Jobim, era também conhecido por ser um grande conquistador, tendo se casado nove vezes.

Em 1938, ganhou uma bolsa do Conselho Britânico para estudar língua e literatura inglesas na Universidade de Oxford. Retornou ao Brasil em 1941. Em 1943, passou no concurso para o Ministério das Relações Exteriores e, em 1946, assumiu o posto de vice-cônsul, em Los Angeles, nos Estados Unidos.

Suas grandes parcerias na música incluem Toquinho, Tom Jobim, Baden Powell, Chico Buarque e Carlos Lyra.

 

Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (1886 – 1968) foi um poeta, crítico de literatura e de arte, professor de literatura e tradutor. É considerado um dos maiores poetas de língua portuguesa e um grande nome também do Modernismo brasileiro. Sua poesia, frequentemente retratando o sofrimento provocado pela tuberculose (de que ele foi vítima), notabilizou-se pelo verso livre, pela oralidade e pela coloquialidade. Iniciou suas produções literárias no Simbolismo, aproximando-se posteriormente das vanguardas europeias e da poesia moderna.

 

Londres, 2 de outubro de 1938.

 

Mané,

 

        Esta carta é meu suspiro de desafogo. Já estava meio de volta (ao Brasil), passagem de reserva e, por outro lado, meio impossibilitado de voltar se a emergência fosse declarada em Londres, como esteve para ser até as 3h da tarde do dia 27, quando o Pacto de Munique (entre Alemanha, Inglaterra, França e URSS) entregou a Tchecoslováquia a Hitler. É que tinha recebido conselhos formais, tanto do British Council como do Régis, de seguir para Oxford imediatamente. Achei feio fugir antes do tempo e não me arrependo, não. Tenho uma máscara contra gases para mostrar a vocês na volta e a satisfação de tudo ter saído bem, dentro de mim.

        Você não pode imaginar que dia 27! Coisa louca de atmosfera e de suspensão. Fiquei acreditando que a guerra é uma entidade à parte no mundo, que nem fala o Eclesiastes. Há um momento em que ela independe totalmente do controle político dos países. Dia 27 foi assim na Europa. Ao mesmo tempo que o Chamberlain (1º ministro inglês) partia para Munique, esperava-se o bombardeio aéreo de Londres. E eu tenho a impressão de que foi o medo do mundo que evitou a guerra agora, ao contrário de 1914. Ela esteve por um fio, por horas, uma coisa realmente misteriosa. Tanto assim que inglês perdeu a cabeça, seu Mané. E ficou alegre como criança, depois do Pacto de Munique. E não ligou muito, não, pras humilhações e atitudes antidiplomáticas do Prime Minister.

        Tem-se pena da Tchecoslováquia, aqui em Londres, mas se diz: “Well, it´s better, anyway” (Bem, é melhor de qualquer forma). E é bem compreensível, depois de se experimentar uma máscara contra gases. Você via, nos fittings (sessões de treinamento), centenas de pessoas sentadas e centenas de outras experimentando e ajustando aquelas coisas incríveis. A impressão que faz é fantástica, é mesmo cômica. Porque eu, por exemplo, achei mais fácil se morrer dentro daquele treco do que do próprio gás. A gente fica completamente asfixiada, é uma bosta.

        Dia 28, à noite, houve quase Carnaval em Londres. Todo mundo ficou tão alegre, as caras nas ruas eram tão engraçadas, que eu próprio acho que fiquei meio abestalhado também. As pessoas se falavam, conversavam, havia tudo, menos inglês em Londres. Já agora, por exemplo, quatro dias passados, caiu de novo o frio e a vida se normalizou. Mas eu assisti a essa coisa impressionante: a Inglaterra angustiada, e depois eufórica. As pessoas dizem que nem em 1914 houve tanta angústia assim. Embora ainda haja ingleses que acham que a guerra devia ser declarada de qualquer maneira, para esmagar definitivamente a Alemanha.

        Aplaude-se loucamente o Chamberlain nos cinemas, quando ele aparece. Aplaude-se mesmo Mussolini e só se vaia Hitler (assim mesmo, a discrição inglesa faz “psiu!” e sempre há dois ou três de boa vontade que batem palma). No fundo, ninguém acredita que realmente alguém queira realmente a guerra, e todo mundo faz o que pode para ser gentil com todo mundo.

        Sigo para Oxford no dia 6. Tenho passado tardes inteiras na National Gallery vendo aquelas belezas todas. Que coisa, Mané! Conte isso pro Portinari. A pintura inglesa é que é fraquinha, ainda mais perto dos italianos e espanhóis. Hoje, vou ver os modernos da Tate Gallery. Vi também as águas-fortes e os desenhos de Rembrandt no British Museum, uma maravilha. Um desenho de Christina Rossetti, moça feita pelo Dante Gabriel, um amor, uma uva.

        Já faço uma porção de coisas sozinho. Já ando de underground (metrô) sem precisar de explicações e, de ônibus, então, nem se fala. Ontem, jantei na embaixada um grande jantar, tive a cabeceira e fui brindado pelo sr. embaixador. Tive também meu nome nas “fôia”, “Senhor de Moraes”, e um convite do Rotary Club para ver o Castelo de Windsor, mas acho esses negócios de Rotary suspeitos e que dão peso.

        Meus novos amigos me chamam Vinô. A bordo me chamam de Mr. Moraes, e os rapazes, de “Mil-réis”, o que é muito bom. No British Council, continuam a me chamar de Mr. Moraes. Enfim, sempre vão me chamando de qualquer coisa.

        Estou já com vontade de me ver em Oxford e descansar um pouco. Londres cansa muito a gente. É tudo tão exatamente igual e medido e feito para facilitar a vida, que eu tenho a impressão de que aqui a surpresa nasceu morta. O que há de interessante é a cidade em si, no seu íntimo.

        Mané, dá grandes abraços no pessoal todo, em casa de mme. Blank de Magu Leão, de Rodrigo Melo Franco de Andrade, de Prudente de Morais Neto etc. Dá grandes abraços no Pedro Nava, no Mário de Andrade, no Portinari – e Maria Portinari. Diz que eu logo escreverei para cada um. Diz para o Jaime Ovalle que ele é uma joia e que eu mando um abraço.

        Com a maior saudade, o

        Vinicius.

 

In: CASTRO, Ruy (org.) – Querido Poeta – Correspondência de Vinicius de Moraes. 1ª ed., São Paulo, Companhia das Letras, 2003, pp. 61-63.

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

3 Comments

  1. Veronica Mucury disse:

    ♥️♥️♥️♥️♥️♥️♥️♥️♥️♥️♥️

  2. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Sensacional essa carta do Vinícius para o “Mané”.
    Muito humor, apreensão e carinho. Muito boa a frase sobre Londres: “a surpresa nasceu morta”.
    Enfim, excelente texto.
    Parabéns

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