CARTAS – O OUTRO LADO DOS ESCRITORES 8
20 de junho, 2025
Mostrar tudo

CARTAS – O OUTRO LADO DOS ESCRITORES 9

Nas breves cartas que reproduzo abaixo, o poeta Manuel Bandeira escreve para dois amigos, também escritores – Clarice Lispector e Vinicius de Moraes.

Para Clarice, que vivia com o marido diplomata na Suíça, o poeta pernambucano mostra seu lado irreverente e bem-humorado: ao falar para os “imortais” da Academia Brasileira de Letras, na cerimônia de nomeação do escritor João Peregrino Júnior, Bandeira brincou com o fato de que Peregrino também era médico. O que mais se nota no texto, contudo, é o sentimento de saudade pela distância da amiga querida e o carinho devotado à escritora de “A Hora da Estrela”.

Na carta a Vinicius, que estava vivendo no Uruguai, Bandeira aproveita a proximidade do aniversário do amigo para lhe mandar um abraço e para lhe contar um pouco sobre si mesmo; também faz alusão à música “Chega de Saudade” (do LP “Canção do Amor Demais”), no qual Elizeth Cardoso interpreta as canções de autoria do Poetinha com Tom Jobim.

Por fim, a linda troca de dísticos (poemas de dois versos) entre Bandeira e Cecília Meireles é de uma ternura e de um carinho que dispensam palavras.        

       

Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (1886 – 1968) foi um poeta, cronista, crítico de literatura e de arte, professor de literatura e tradutor. É considerado um dos maiores poetas de língua portuguesa e um grande nome também do Modernismo brasileiro. Sua poesia, frequentemente retratando o sofrimento provocado pela tuberculose (de que ele foi vítima), notabilizou-se pelo verso livre, pela oralidade e pela coloquialidade. Iniciou suas produções literárias no Simbolismo, aproximando-se posteriormente das vanguardas europeias e da poesia moderna.

 

Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes (1913 – 1980), mais conhecido como Vinicius de Moraes, foi um poeta, dramaturgo, jornalista, diplomata, cantor e compositor brasileiro.Essencialmente lírico, o “Poetinha”, apelido que lhe teria sido atribuído por Tom Jobim, era também conhecido por ser um grande conquistador, tendo se casado nove vezes.

Em 1938, ganhou uma bolsa do Conselho Britânico para estudar língua e literatura inglesas na Universidade de Oxford. Retornou ao Brasil em 1941. Em 1943, passou no concurso para o Ministério das Relações Exteriores.

Suas grandes parcerias na música incluem Toquinho, Tom Jobim, Baden Powell, Chico Buarque e Carlos Lyra.

 

Clarice Lispector (1920-1977) nasceu em Chechelnyk, na Ucrânia, tendo vindo com a família para o Brasil em 1922. De família judaica russa, Clarice naturalizou-se brasileira e aqui notabilizou-se como uma das escritoras mais importantes do país no século XX. Escreveu romances, contos e ensaios, além de ter trabalhado no jornalismo como entrevistadora e tradutora. Seus personagens, embora comuns, frequentemente atravessam algum processo de epifania (revelação) que transforma tanto suas vidas quanto a eles próprios. Alguns de seus livros mais famosos são “Laços de Família” (contos), “Perto do Coração Selvagem”, “A Paixão Segundo G.H” e “A Hora da Estrela” (romances). Foi casada com o diplomata Maury Gurgel Valente, pai dos dois filhos da escritora, Pedro e Paulo. 

 

 

Rio, 13 de agosto de 1946.

Clarice querida,

 

Muito obrigado pelo seu cartão postal de Berna. Espero que vocês se tenham dado bem por aí: que não lhe aconteça o mesmo que ao Ribeiro Couto, de quem acabo de receber uma carta melancólica – tão melancólica e desanimada que me espantou. Parece que o poeta anda abafado com a sombras do Jura. Até voltou a poeta no estilo adolescente de “Jardim das Confidências”.

Não me venha denegrir aquela viagem de ônibus para Copacabana. Você falou de si mesma e de literatura, mas fui eu que provoquei, porque me interessava conhecer o mecanismo de suas criações. Seu nome aparece frequentemente nas críticas e crônicas literárias, citado a propósito de outros autores.

No mês passado, tive que funcionar na Academia para fazer o discurso de saudação do Peregrino Júnior. O imprudente falou durante uma hora e 40 minutos, entregando-me um auditório sovado e sonolento. Mas o meu discurso foi uma brincadeira do princípio ao fim. A propósito dos trabalhos de biotipologia do Peregrino, lancei em plena Academia a Nova-Gnomonia com seus parás, mozarlescos, quernianos, onésimos e dantas. Zombei do fardão e do lema “Ad immortalitatem”, com tanto jeito que fui, depois, sorridentemente felicitado até pelos acadêmicos mais enfatuados da glória acadêmica.

Escreva-me, Clarice. Escreva carta. Um cartãozinho seu já é uma delícia. Mas eu quero a delícia maior das cartas. E fale de você. Nunca tenha medo de falar de você para mim.

Receba um abraço e as saudades de

                                                        Manuel

 

Rio, 17 de outubro de 1958.

 

Vinicius querido,

 

No meu Birthday Book leio à página 19 de outubro o seu nome e o de Guita Blank. Espero que o seu amor esteja por aí para confortá-lo nesse transe. Se, com o meu abraço posso acrescentar-lhe mais um gosto, aqui vai ele, bem fraterno e cheio de saudades. Elas agora não dão folga porque um de seus sambas-canção (“Chega de Saudade”) cantado pela Divina (Elizeth Cardoso) caiu no goto do público e a todo momento se está ouvindo em toda parte.

Como cronista da cidade, eu não podia deixar de registrar o fato, e fi-lo neste palmo de prosa vadia que incluo aqui.

No mês passado, um clube que funciona nas matas virgens do Sumaré me prestou homenagem. A Cecília Meireles, convidada, não pôde ir, mas me mandou umas rosas com este dístico:

 

“Nunca fazemos o adequado, quando

Louros mandar devia, rosas mando”.

 

Ao que eu respondi incontinenti:

 

“Melhor que o louro é a rosa, ainda mais quando

Juntas teu verso à flor que estás mandando”.

 

Escreva, diplomata apaixonado. Um grande abraço do velho

                                      

                                                          Manuel

 

In: MONTEIRO, Teresa (org.) – CORRESPONDÊNCIAS – CLARICE LISPECTOR – 1ª ed., Rio de Janeiro, Rocco, 2002, pp. 95-96.

 

In: CASTRO, Ruy (org.) – Querido Poeta – Correspondência de Vinicius de Moraes. 1ª ed., São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 248.

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

2 Comments

  1. Professor, a cada Crônica publicada para mim é um deleite, além de muito aprendizado! E que venham mais “O outro lado do escritores”.

    Obrigado por compartilhar estas e tantas outras preciosidades.

  2. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Delícia de leitura. Cartas “saborosas” recheadas de versatilidade e humor.
    Parabéns

Deixe um comentário para Edilson Cardoso Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *