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O VIAJANTE

Aos que trabalham longe da cidade onde moram e passam muito tempo separados da família.

 

Ele é um viajante. Na madrugada, mostra a passagem para o motorista antes de entrar no ônibus e já não sabe mais quantas vezes fez isso nos últimos anos. Acomoda-se em sua poltrona, normalmente na janela, e aguarda que todos embarquem para que a viagem comece. Conseguirá dormir ou se manterá acordado, pensando e pensando? Talvez uma música lhe faça companhia nos fones de ouvido que ele traz no bolso da camisa.

Ele passa boa parte da semana longe de casa. São tantas noites e madrugadas em rodoviárias, ônibus e estradas, que ele já perdeu as contas das distâncias percorridas. Talvez, se somados, todos os quilômetros traçassem um caminho até as estrelas mais distantes da Terra, ou até países inimagináveis com pessoas de hábitos exóticos.

 As viagens que ele faz para dentro de si mesmo, no entanto, são as mais profundas, são aquelas em que ele pensa, reflete, sente saudade, se emociona, chora, ri, arrepende-se, sente orgulho, lembra de fatos, gente, lugares e tempos que se foram para nunca mais. São viagens que ele faz enquanto o ônibus corta a madrugada, e os primeiros raios de sol ainda não surgiram no horizonte. É nessas viagens para dentro de suas lembranças que ele revê a sua vida.

Enquanto a estrada se alonga, parecendo infinita, ele fecha os olhos e faz um balanço do dia que se foi. Seu trabalho, as pessoas com quem conviveu, o que presenciou. Ele é pai, marido, amigo, irmão, desconhecido, um rosto a mais na multidão de peregrinos que vêm e vão no anonimato dos bancos reclináveis dos ônibus dessas jornadas sem fim. Especial para seus amigos e familiares; desconhecido para os outros passageiros.

Às vezes, abre um livro enquanto o ônibus desliza pelo asfalto, e ele faz ainda uma outra viagem dentro daquela que está em curso. Às vezes, ele mesmo escreve seus pensamentos, viajando (sempre!) para dentro do seu coração, que parece ora conter toda a dor do mundo, ora toda a alegria desta vida. Pensa na família que o aguarda assim que a manhã desponta; quase não aguenta de saudade de seu travesseiro e de sua roupa de cama limpa que o esperam faz alguns dias. Sonha com o banho de logo mais – o carinho da água quente e o perfume do sabonete dirão: “Você está em casa!”. Fechará os olhos de cansaço debaixo do chuveiro.  

Ainda na estrada, enquanto muitos dormem nos bancos reclinados ao seu lado, seu olhar penetra na noite e ele consegue distinguir as montanhas e as árvores na quietude em que tudo é paz e sossego. Apoia sua cabeça na mão e seu pensamento é muito mais rápido que o ônibus – se pudessem medir, veriam que é muito mais rápido do que um avião! Ele pensa, e um turbilhão de coisas invade seu cérebro, como a lhe dizer que ele não é um, mas vários homens que vivem várias existências simultaneamente.

A ânsia de chegar em casa toma conta dele. O viajante conta os dias e os meses que faltam para que essa rotina termine, para que ele possa, finalmente, levar a vida que deseja, junto da família, sem longas esperas em rodoviárias nas noites frias da cidade gelada. Bendita aposentadoria!

Ele anseia pelo abraço, pelo sorriso, pelo aconchego; anseia pela rua tranquila onde mora e onde quer simplesmente caminhar sob a garoa ou sob o sol. Quer olhar pela janela e ver a terra úmida pela chuva que caiu na madrugada – chuva que ele terá ouvido de sua cama, sob o cobertor quente que o agasalha, e não mais pela janela de um ônibus que corre e parece não chegar nunca.

Sair ao quintal e ver a gota de orvalho na roseira; ver o vidro da janela molhado pela geada e poder fazer, como as crianças de antigamente, um coração com os dedos; poder voltar para dentro de casa e ligar o rádio baixinho, enquanto prepara uma caneca de uma bebida bem quente, sem hora marcada para coisa alguma. Voltar para a cama se quiser, abrir o livro que o aguarda ou fazer uma longa caminhada, respirando o ar puro da manhã em sua cidade. Essa possibilidade o faz feliz.

O viajante pensa em tudo isso enquanto seu ônibus vai vencendo os quilômetros que faltam até seu destino. No horizonte, uma primeira estrela aparece – mas não é uma estrela: é o planeta Vênus, prenúncio do amor que ele encontrará, merecidamente, em casa, junto aos seus.

 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

2 Comments

  1. Professor, eu fui um viajante durante muitos anos! Perdi as contas de quantos quilômetros percorri de Espírito Santo do Pinhal a São Paulo, de Espírito Santo do Pinhal a Campinas e vice versa. Foram anos de estrada ouvindo muitas músicas, muitas conversas, muitos sonhos e muitas pessoas que conheci – foram momentos difíceis, mas de muitos aprendizados. As lembranças são tantas que emocionei-me.

  2. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Belíssima crônica. Deliciosa é lirica. Um turbilhão de emoções dentro do cérebro humano a cada instante de nossa existência.
    Parabéns pela crônica.

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