OPINIÕES
16 de junho, 2019
A MAÇÃ
27 de junho, 2019
Mostrar tudo

O LADO RICO DA CIDADE

“To him you were nothing but a little plaything

Not much more than an overnight fling (…)”

“The poor side of town” – Johnny Rivers & Lou Adler

Passa das 2h da manhã de uma madrugada gelada na cidade. Estou no ponto esperando o que vier primeiro – um ônibus ou um táxi. Quero voltar para minha casa logo, tirar esse roupa, tomar um banho quente e cair na minha cama até o meio-dia. Será um dia frio, eu sei, pois todos os dias têm sido frios na capital neste mês de junho. A garoa não tarda a cair, este ponto de ônibus não tem cobertura e são raros os carros que passam por aqui a esta hora. Será que ainda tem ônibus circulando? Tentei chamar um táxi ou uber pelo celular neste fim de mundo e não consegui.

A culpa é minha. Eu deveria ter vindo embora muito antes. Eu deveria ter feito o que vim fazer, deveria ter pego meu dinheiro e me arrancado enquanto havia transporte público… mas caí no erro de sempre: de querer a sua companhia, de ficar um pouco mais, de me deixar envolver e ser mandado embora quando tudo é silêncio e ele resolve que quer ficar sozinho, pois quer dormir e não gosta de ninguém na mesma cama.

Ele não tem sequer a gentileza de me oferecer o quarto de hóspedes para que eu fique até a manhã seguinte pelo menos. Ele não tem sequer a sensibilidade de perceber que, a esta hora, vou ter de esperar um tempão por uma condução, seja numa noite muito quente, seja numa noite muito fria como essa!

A cada vez que ele me telefonema, eu prometo a mim mesmo que serei breve. Já sei do que ele gosta, já sei de suas fantasias, seus fetiches e desejos. Então, prometo pra mim mesmo que irei, farei o que tiver de fazer, pegarei meu dinheiro e cairei fora daquela casa linda, mas gelada. Que casa gelada! Parece um mausoléu! Sinto calafrios cada vez que entro lá… mas tenho confundido as coisas ultimamente. Tenho traído meus princípios de profissional e espero sempre um pouco mais desse homem. Ele nunca me dará um pouco mais!

Lembro da primeira vez em que vi parar aqui, na cama dele, debaixo de um edredom de seda branca, lençóis brancos e fronhas brancas também, um tecido delicioso, uma cama enorme, calefação no quarto e o escambau antes de começar a coisa toda. Saímos da boate por volta de umas 3h da manhã e eu disse a ele que meu preço era alto. (Afinal, eu tinha consciência de que meu corpo era bonito, tudo no lugar, malhado, eu com 23 anos, um pau grande, fazendo de tudo na cama e deixando os clientes malucos e doidos para me verem de novo.)

Minha moto havia sido roubada fazia pouco tempo, então vim com ele no carrão que me trouxe até aqui, uma mansão de vários quartos, uma casa exagerada para alguém que mora sozinho e que não tem nem um cachorro para lhe fazer companhia. Lembro que eu entrei e – como ele já esperava – fiquei de boca aberta diante das dimensões da propriedade. Ele me agarrou por trás, beijou meu pescoço, passou a mão pelo meu peito como a se certificar que eu tinha mesmo tudo o que ele vira na boate e trocamos um beijo demorado. Por exigência dele, fomos primeiro à suíte e tomamos um banho juntos. Debaixo da água, ficamos nos provocando com beijos, passadas de mão, abraços, sabonete nas costas, e a água caindo, uma ducha deliciosa que eu nunca antes havia provado na vida. Ele esfregou meu cabelo gentilmente com um xampu de pêssego importado e o cheiro inundou o banheiro todo.

Ao sairmos, ele me entregou uma toalha também branca, de uma maciez que eu nunca havia experimentado sobre meu corpo e de um perfume que eu nunca havia sentido em um tecido. Tudo aquilo me excitou muito e meu pau duro fez com que ele viesse ávido e cheio de tesão para cima de mim. Pedi um pouco de pasta de dentes e ele entendeu que também deveria tirar o cheiro insuportável de uísque da boca. O que se seguiu foi um sexo prazeroso, não o melhor que eu já havia provado com um cliente, mas bom, muito bom. Ele pediu que eu o penetrasse sem camisinha, e eu recusei a oferta. Sem camisinha, sem sexo anal. Com um pouco de mau humor, ele foi ao armário do banheiro e trouxe um preservativo. Gozei dentro dele. Depois de tudo, dormimos muito e, como no dia seguinte era domingo, acordamos por volta de umas 11h da manhã.

Sou um profissional e estou nesta vida há três anos. Sei me comportar quando o sol nasce e um cliente age como se nada houvesse acontecido na madrugada anterior. A maioria deles adquire outra fisionomia, outra cara, sei lá, somente para afirmarem para si mesmos que tudo já acabou e que, agora, vão voltar à “vida normal”. O sexo foi rápido, gostoso, gozaram até o teto, mas não querem um michê dentro de suas casas por muito tempo. Sem mágoas. Eu compreendo.

Lá se vão uns seis ou sete meses desde o nosso primeiro encontro. Desde então, ele me liga a cada 15 dias mais ou menos, e o ritual é sempre o mesmo: ele deixa um recado na minha caixa postal e eu ligo; combinamos a noite e a hora em que ele me quer na sua casa. Como faço faculdade à tarde, tenho as noites e as manhãs livres. Saio da aula e já vou para a casa dele que fica aqui no Morumbi, um lugar ermo, escuro, de casas lindas, mas um bairro desagradável pra mim. Decididamente, não gosto daqui.

Ele é um rico executivo, 55 anos, divorciado, pai de duas filhas que moram no exterior e que ele visita duas vezes por ano. A esposa já está com outro, mas, se souber da vida que ele leva com rapazes na cama, a vaca será capaz de chantageá-lo e tirar muito do que ele tem em dinheiro e apartamentos. Tudo isso, fico sabendo ao longo de nossos encontros, principalmente quando ele está de bom humor e me convida não só para um programa, mas para jantar com ele na casa enorme. Quando chego, a comida já está pronta, pois ele a comprou no caminho vindo do trabalho. Nunca vi um empregado sequer. Claro que ele tem, mas nunca me deixou vê-los. Por falar nisso, ele trabalha na Paulista… isso, quando está no Brasil, pois viaja muito também. É bom pagador – paga o que eu peço, não fica pechinchando, regateando, pois diz que isso é coisa de pobre. Melhor pra mim.

Depois do quarto ou quinto programa que fizemos, comecei a me afeiçoar a ele. Não sei se porque estou sozinho nesta cidade desde que passei no vestibular ou se porque ele me trata bem… isto é, trata bem do modo dele. É gentil, porém distante; fala muito da própria vida, mas consegue ser, de algum modo, paradoxalmente reservado. Há noites em que quer somente sexo e eu já aprendi a interpretar a cara dele; há outras vezes em que me chama, quer ver um filme comigo, quer papear. Então, pede que eu traga roupas, me faz tomar um banho, jantamos juntos e ficamos no sofá vendo um filme até que ele tenha vontade de transar e, depois, dormir… sozinho! Diz que não gosta de dormir com ninguém na cama etc. Por isso, preciso estar sempre atento às horas e não me deixar levar pela maciez de sua cama nem pelo aconchego de seu (maravilhoso) quarto.

Sei apenas o seu primeiro nome. Não sei em que empresa trabalha – ele nunca me disse, eu nunca perguntei. Gosta de mim, diz, porque sei falar e tenho cultura. Digo a ele que faço faculdade  e que gosto muito de ler, por isso sei me expressar e não sou um jeca como a maioria dos michês que eu conheço. Ele apenas sorri e me diz: “Ótimo. Não gosto de gente ignorante”. Geralmente, me abraça com delicadeza, embora seja incapaz de uma palavra de carinho; me beija muito bem, como se fosse meu namorado, mas é incapaz de qualquer gesto de ternura depois que goza. Acho que, se ele pudesse, faria com que eu sumisse de sua casa assim que se sentisse satisfeito.

Aprendi a lidar com esse homem que eu apelidei de “Senhor Frio”. Como já disse, sei de suas fantasias e fetiches e tento me convencer de que o dinheiro que ele me paga é o que interessa. O problema é que, de uns tempos pra cá, esse dinheiro não tem sido mais tão importante – tenho pensado nele mais do que deveria. Tenho cancelado com outros clientes quando ele me liga e eu minto que estou livre, sim, e que posso ir à sua casa na noite em que ele quiser. Ele me manda pegar um táxi e o paga assim que eu chego.

Agora há pouco, sem maiores explicações, me deu o dobro do que eu geralmente cobro. Agradeci e guardei o dinheiro. Disse que eu usasse pro táxi e tomasse cuidado no ponto de ônibus a esta hora de uma madrugada fria no Morumbi.

Ele me dá todas as recomendações de quem se importa comigo – mas jamais me deixa ficar além do combinado. E isso dói. Às vezes, consegue ser mais frio do que esta madrugada. Não tem a sensibilidade de me dar uma carona ou de me oferecer um dos muitos quartos dessa mansão, como eu já disse.

Volto pra casa pensando em tudo isso, pensando na vida, pensando em mim. Procuro a Lua no céu e não a vejo – tudo é névoa e garoa na madrugada. Ouço meus passos na calçada úmida e sinto uma saudade enorme nem sei do quê… o negócio é dormir. O celular toca. É um cara que quer que eu vá até sua casa a esta hora! Não mesmo.

Vontade enorme de chorar…

 

                                 15.3.2016 – 2h00 am

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *