INFÂNCIA
25 de fevereiro, 2021
O ASSASSINATO DE GEORGIE
13 de abril, 2021
Mostrar tudo

JUCA E FREDERICO

“Amizade: casamento de dois seres que não podem dormir juntos” – Jules Renard (1864 – 1910), escritor francês.

 

         Acabei de reler “Contos Novos”, de Mário de Andrade (1893 – 1945), escritor considerado por muitos o maior nome da chamada Primeira Geração Modernista. Mário foi romancista, poeta, musicólogo, historiador e crítico. Nome fundamental na organização da Semana de Arte Moderna em 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, desempenhou um papel importante no cenário cultural brasileiro no começo do século 20.

       No livro citado acima, temos o menino Juca como narrador em mais de um conto – principalmente nos interessantes “Peru de Natal” e “Frederico Paciência”. É sobre este que quero escrever um pouco.

       Na história, o menino Juca relata sua intensa amizade com o rapaz do título. Ambos têm 14 anos, sendo que Frederico é um pouco mais velho que o narrador. Frederico é bom aluno, estudioso, quer fazer Medicina, filho único de uma família portuguesa bem estruturada e rica. Juca, por sua vez, é aluno relapso, não gosta da escola e não tem um projeto a seguir como profissão. É de uma família mais simples, o que o constrange diante do outro. O narrador confessa que sentiu uma simpatia deslumbrada pelo amigo e, assim, aproximou-se dele como “uma espécie de saudade do bem, de aspiração ao nobre, ao correto, que sempre fez com que eu me adornasse de bom pelas pessoas com quem vivo”.

Juca afirma ainda que “admirava lealmente a perfeição moral e física de Frederico Paciência”, invejando-o “com muita sinceridade”. Mais adiante, faz uma declaração um tanto forte para um livro de 1947: “Tive ânsias de imitar Frederico Paciência. Quis ser ele, ser dele, me confundir naquele esplendor, e ficamos amigos”.

       Mais tarde, Juca relata que, com o passar do tempo, “a vida de Frederico Paciência se mudou para dentro da minha”.

       Por aí, o leitor já pode sentir a intensidade que brotará daquela relação – os rapazes se tornarão unidos, serão vistos sempre juntos, trocarão confidências e uma cumplicidade nascerá entre eles, selando sua amizade.

       Logicamente que tão forte relação despertará a atenção dos outros: “Diante de uma amizade assim tão agressiva, não faltaram bocas de serpentes”, relata Juca. E o leitor chega àquele que, para mim, é um dos episódios mais marcantes do conto. A reação de Frederico ao comentário de um rapaz do colégio é violenta: ele ataca o maledicente, espanca-o e o deixa desacordado no chão. Juca se mantém impassível diante de tudo – até dois dias depois, quando o caluniador aparece na escola e o narrador decide, ele também, acertar as contas com o menino. Depois da aula, acabam brigando, com Juca acertando-lhe vários socos na cara e pondo o garoto para fugir.

       É uma passagem interessante do conto porque é ambígua. Ao mesmo tempo em que procuram “lavar sua honra” diante do comentário proferido pelo colega de escola, Frederico e Juca são obrigados a encarar a espécie de relacionamento que mantêm. A reação dos dois meninos é um tanto exagerada ao surrarem sem dó aquele que ousou expressar sua opinião sobre a amizade dos rapazes. Por que reações tão violentas? O que pretendem mostrar com as respectivas brigas? Querem mostrar que são homens com “H” maiúsculo? Pretendem mostrar a si mesmos e aos outros rapazes o quanto ficaram ofendidos e o quanto a amizade de ambos é pura e “sem outras intenções”?

 Insisto que, para mim, tudo parece exagerado por parte de ambos. Se não houvesse nada entre eles, o comentário do outro teria sido simplesmente desprezado. O texto vai afirmando exatamente o contrário do que desejam, pois os amigos se sentem cada vez mais ligados, até que um beijo no rosto de Juca é dado por Frederico no meio de uma discussão acalorada sobre se Napoleão Bonaparte era gênio ou não.

       Aqui, aproximo a cantora Barbra Streisand de Mário de Andrade. Barbra, ela mesma um ícone para os homossexuais mais velhos, gravou uma bonita canção de sua autoria intitulada “Unusual way”. Em uma de suas apresentações, a cantora introduz a música dizendo: “Esta é uma canção sobre aquelas relações que não podem ser facilmente definidas”. Alguns versos dizem: “De um modo muito ímpar, eu precisei de você. / De um modo muito ímpar, você foi meu amigo / Talvez tenha durado um dia, talvez uma hora / Mas, de alguma forma, não vai acabar (…) / De uma forma muito ímpar, acho que te amo / Você não tem ideia do que faz comigo / Não tem ideia do que sou eu olhando para você (…)”.

       Penso nessa música quando me lembro de Juca e Frederico. Muitos de nós tivemos relações ambíguas com outras pessoas, sem que pudéssemos definir se éramos somente amigos ou se algo mais havia. A amizade começa a ficar nebulosa quando o ciúme é excessivo, quando há o sentimento de posse, quando se quer a outra pessoa mais do que se deveria. Há sempre o perigo de se confundirem sentimentos e de uma dependência grande nascer por parte de um dos envolvidos. Até onde se pode ir em uma amizade? O conto de Mário de Andrade explora essa ambiguidade com maestria.

       Estou falando de um livro lançado em 1947 – dois anos após a morte do autor, portanto, numa sociedade ainda bastante conservadora, o que me leva a conjecturar sobre a reação das pessoas diante da história dos dois rapazes. Juca e Frederico evitavam enxergar o óbvio? Era melhor que tudo ficasse como estava? Não revelarei o fim do conto. Acho que vale a pena conhecê-lo e conhecer um pouco do escritor paulistano que teve influência decisiva na renovação da literatura e das artes no Brasil. (É fácil encontrar o texto na internet…)

       Importante lembrar que o próprio Mário sofria com sua fama de homossexual. Em uma carta a Manuel Bandeira, datada de 7 de abril de 1928, ele faz referências diretas à sua homossexualidade. A carta permaneceu lacrada durante muitos anos, e nela nota-se uma certa tristeza por parte de Mário com as fofocas a seu respeito.

       Eram tempos nos quais a homossexualidade era um tabu e poderia enterrar uma carreira. Pelo que se sabe, comentários maldosos fizeram com que o escritor rompesse relações com outro nome importante do Modernismo: Oswald de Andrade.

       Oswald era uma pessoa ácida e não poupava Mário de sua ironia e veneno. Foram amigos até 1929. Quando morreu de infarto, aos 51 anos de idade, Mário, muito magoado, já havia se afastado de Oswald definitivamente.

       Conta-se que Oswald ficou desesperado ao saber da morte de Mário – mas já era muito tarde. 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

6 Comments

  1. Suzy Aparecida Colli disse:

    Magnífico !
    Só isso descreve este texto.
    Adorei.

    • Régis Linhares disse:

      Belo texto sobre a relação das personagens e, também do autor. Confesso que não o conhecia e me instigou a leitura. Já tinha lido entretanto sobre a homossexualidade de Mário de Andrade e sua difícil trajetória naqueles tempos. Obrigado por compartilhar Vítor (ainda mais nesta data especial da publicação).

  2. Guilherme Sardas disse:

    Lindo texto sobre este lindo texto de Mário. Um conto sobre amizade que adoro, de um lirismo ímpar. Que nos comove. Obrigado por nos lembrar das obras-primas do modernismo. E o Peru de Natal outro conto muito especial. Abraço!

  3. Clarice keri disse:

    Texto maravilhoso, com detalhes delicados sobre pessoas reais que o torna uma delícia de leitura. Obrigada.

  4. Marco Antonio Gonçalves disse:

    Copiando a fala de faraó no filme os dez mandamentos: esplêndido!!!!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *