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O VELHO E O NOVO

Vinicius,

       São quase 11h da noite de segunda-feira, uma noite gostosa, 18 graus lá fora, nenhum carro passando pela minha rua, e estou esvaziando a segunda taça de um vinho argentino delicioso. Você gostaria dele se estivesse aqui comigo, não tenho dúvidas.

       Poderíamos estar conversando por vídeo neste momento, mas resolvi me sentar ao computador e apelar pro “antigo” e-mail (é incrível a rapidez com que as coisas envelhecem neste século 21!), pois, assim, posso pensar melhor e refletir sobre o que foi esse mês com você.

       Não sei se o que já rolou entre nós pode ser chamado de namoro. Passamos alguns fins de semana juntos, temos uma vida bem agitada – você, na sua agência de publicidade; eu, no meu escritório de advocacia com aqueles meus dois sócios que me deixam maluco, amigos de faculdade de quem eu gosto muito. Sei que eles gostam de mim também e não me enchem o saco porque sou gay e não os acompanho nas farras com a mulherada.

       Bem, eu dizia que não sei definir o que aconteceu até aqui. Sua companhia me é prazerosa, você é inteligente e espirituoso, e ainda não experimentei seus momentos de mau humor, coisa que todos temos, em menor ou maior escala. O fato é que gosto de ter você por perto, e acho que você também curte minha companhia. Quanto a isso, tudo muito bom!

       Eu escrevo, porém, porque acho que você precisa parar e pensar um pouco no que tem sido sua vida depois que você e seu ex-marido se separaram. Foi um casamento de cinco anos, vocês moravam juntos, tinham um belo apartamento com cachorro e essas coisas todas de propaganda gay de margarina. O casal perfeito que deu de cara com o desgaste, o cansaço, o enjoo – coisas a que todos nós estamos sujeitos. Homos e heteros. A solução foi uma “separação dolorosa”, como você mesmo me disse, com choro, tristeza e tentativas de reconciliação. (Acho que eu nem precisava saber de tudo isso tão cedo…)

       Minhas perguntas são: tem certeza de que você superou aquilo e quer um novo relacionamento em sua vida? Tem certeza de que você já deixou aquela relação no passado?

       Foi ótimo conhecer a família de sua irmã no outro domingo e conhecer seus pais ontem. Percebi que a ida à casa de sua irmã e de seu cunhado foi uma espécie de teste para que eles “me aprovassem ou não” – uma prévia antes de me apresentar ao seu pai e à sua mãe. Fui muito bem recebido pelo primeiro casal – e, de verdade, adorei seus dois sobrinhos. Garotos lindos! Sua irmã é um doce, e seu cunhado, se é meio caladão, acaba se soltando depois de três ou quatro cervejas. Fala até demais, não? Quando ele perguntou se você tinha, finalmente, conhecido alguém pra lhe fazer esquecer do “outro”, o clima ficou um pouco estranho. Sua irmã correu pra consertar a coisa. Deixei pra lá, pois acho que ele não fez por mal. Só deu uma mancada. Ri sozinho depois.

       Admito que eu estava apreensivo quanto a ir à casa de seus pais, no domingo seguinte, ontem. Fazia uma manhã fria, o sol estava brilhando, céu muito azul, mas uma manhã fria. Um dia lindo de outono! O bairro em que eles moram é muito, muito agradável. Essencialmente residencial, bastante acolhedor. Parece mesmo uma vila italiana! Você teve sorte por ter sido criado lá. E imagino quantas recordações o lugar deve trazer a você e à sua irmã.

       E por falar em recordações, meu caro, chego finalmente ao motivo principal deste e-mail.

       Foi um tanto estranho ver, na sala de seus pais, uma foto no porta-retrato na qual estão você e “o outro”, numa viagem para Viena, na Áustria. Vocês estão separados há dois anos, você me diz que ele já está casado novamente, mas que continua em contato com seu pai e sua mãe. Será que aquela foto já não deveria ter sumido daquela casa? Veja que lhe pergunto isso sem qualquer ciúme ou sentimento de posse – não temos um relacionamento que me faça sentir isso com relação ao seu passado, mas achei muito estranho. Muito estranho! Mais estranho ainda foi o clima durante o almoço, quando sua mãe, sempre muito simpática, disse que havia feito um canelone com a receita do ex-genro, enquanto seu pai dizia que havia aprendido a tomar whisky com o dito cujo. Ri por dentro, abaixei minha cabeça e continuei a saborear a massa – deliciosa, por sinal! – que “o inesquecível” havia ensinado.

       Depois, foi a vez de sua mãe, de novo, comentar que recebeu, no aniversário dela, um bolo feito pelo moço e duas dúzias de rosas vermelhas, com um cartão no qual se lia: “Com o amor e o carinho de sempre, fulano”. Lembro que seu pai elogiou o bolo e disse que as rosas eram lindas.

       Nesse momento, a empregada trazia a sobremesa. Ela está com seus pais há mais de 20 anos, não é isso? Uma senhora muito distinta, muito séria, que não quis se juntar a nós na mesa, apesar da insistência da família. E percebi que ela foi incapaz de um sorriso para mim, mesmo quando nos cumprimentamos na nossa chegada. Atribuí seu rosto sério ao trabalho que lhe ocupava a mente na enorme cozinha da casa. Mas, com o passar do tempo, houve uma hostilidade por parte dela, principalmente quando fui ao banheiro lavar as mãos e a encontrei no corredor. Se eu não desvio, ela passa por cima de mim.

       Sabe no que eu pensei, Vinicius? No romance “A Sucessora”, de Carolina Nabuco. É verdade! Você já leu? Virou novela e muitos dizem que o Hitchcock plagiou a história no filme “Rebeca, a mulher inesquecível”, com Joan Fontaine e Laurence Olivier. No livro, a jovem Marina, criada em uma fazenda, casa-se com Roberto e vai morar em sua mansão no Rio de Janeiro. Ao chegar, a jovem depara-se com um grande retrato da falecida esposa de seu marido, Alice. As comparações são inevitáveis por parte de todos do círculo de Roberto, o que vai oprimindo e pressionando Marina.

       O problema maior, contudo, é a fiel governanta Juliana – uma mulher misteriosa, séria e um tanto hostil às segundas núpcias do patrão. Estou rindo enquanto escrevo, Vinicius. Já pensou? Eu, Marina, entrando na casa dos seus pais e tendo que enfrentar Juliana, a empregada fiel e zelosa da imagem do ex-marido do patrão? Que situação inusitada, meu caro! O fato é que tudo isso me veio à mente no almoço de ontem. Tive que segurar o riso, claro.  

       Foi uma tarde muito agradável, repito. Seus pais são gentilíssimos, doces e receptivos. Adorei nosso passeio pelo bairro quando o jogo do seu pai começou na TV e sua mãe foi se deitar um pouco. Não vi quando “Juliana” foi embora… desculpe, estou rindo sozinho de novo.

       Apesar da insistência de ambos para que ficássemos, resolvemos vir embora por volta das 5h da tarde. Adorei passar pela sua casa, tomar um banho quente com você e transar até as 10h da noite. Que fim de domingo delicioso!

       No caminho para seu apartamento, porém, outra coisa me chamou a atenção. O rádio ligado no carro, uma certa música que você se apressa em me dizer que era a música de “vocês dois”. Olho pela janela, as árvores secas sob o sol fraco e o vento gelado que começa a soprar na cidade. O bairro é realmente bonito, as calçadas repletas de folhas amarelas, os portões das casas silenciosas, um sino de igreja que começa a tocar ali perto, talvez chamando os fiéis para a missa das 6h. E você, com os olhos na rua, dirigindo com atenção, fazendo o comentário sobre a música que era “de vocês” como se você não estivesse falando comigo, mas falando consigo mesmo.

       Fiquei pensando numa série de coisas. Entre elas, se não era um erro minha presença ali, embora o dia tivesse sido tão agradável. E escrevo isso a você com muita tranquilidade, Vinicius. Muita mesmo!

       O dia hoje foi bom, bastante produtivo. Você me ligou na hora do almoço, como havíamos combinado. Gostei do nosso papo, que me valeu até gozação dos meus sócios – eles perceberam que eu estava falando com um… como é que se chama hoje? Ah, “crush”!

       Vinicius, faça um exame de consciência. Não procure em mim a cura para um caso (muito) mal resolvido. Depois desses dois domingos, afirmo que sua família é bastante especial. Eu adoraria tentar fazer parte dela. Veja que escrevo “tentar”: ambos temos idade suficiente para saber que leva tempo para um relacionamento se desenvolver.

       Mas não quero me envolver com alguém que não esteja pronto para “ir em frente”, alguém que tenha parado no tempo junto com sua família e que não consiga esquecer o que viveu com outro. Os fantasmas são sempre perfeitos, meu caro. Competir com eles é inútil, é perda de tempo.

       Pense a respeito disso tudo. Escreva-me um pouco, ao menos, sobre o que expus. Se achar que tudo isso é um monte de bobagem e que eu não mereço resposta, não escreva. Ficamos por aqui.

       Resolvi lhe mandar isso antes que eu me envolva ainda mais. É uma questão de autopreservação. Você é bonito, gostoso, inteligente e cativante… mas tenho de pensar em mim.

       Além disso, “Juliana” me dá um pouco de medo também. Desculpe, mas estou rindo de novo.

       No silêncio da noite, penso em nós dois.

Tenho certeza de que escrevo pouco antes de me apaixonar por você.

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. Eu passei por isso e odeio essas coisas dos familiares ou até mesmo o atual “namorado” ficar relembrando o ex. Deselegante, insensível – acabou, acabou, ponto final, sou extremamente difícil em lidar com isso. Eu gostaria de voltar a ter alguém, mas ando instável – quero tanto e quando aparece alguem é só encrenca, então “sumo”. Tenho alguns “desejos” com algumas pessoas, mas é impossível, fico na minha e continuo sozinho.

  2. Baltasar Pereira disse:

    Uma carta através do e-mail e a Crônica se desenvolve de tal maneira que vai nos prendendo ao enredo do personagem principal.
    Fiquei imaginando rostos,ruas,casas até o Tempo.
    No final trata-se de uma situação que é muito mais comum do que pensamos e quando vamos nos envolvendo a Change de nós machucarmos é muito grande.
    Como foi escrito ,competir com fantasmas é difícil e sempre saímos perdendo.
    Bela Crônica.
    E a curiosidade:
    ” Será que vão continuar e engrenar?”
    👏👏

    • Régis Linhares disse:

      Nossa! Quem nunca…, não?! Experiência prazerosamente antagônica – estar dando um pontapé inicial e outro final (antes mesmo de nos afetar mais). Mas hoje , graças a maturidade que fui conquistando, compreendo que todos que passam em nossas vidas deixam marcas que são insolúveis, cabendo a nós abrigá-las no relacionamento. Temos ainda, uma involuntária incumbência em tecer nossas marcas num novo relacionamento.

  3. Clarice keri disse:

    Bonita história, parece mesmo o princípio de um grande romance, é bom pensar que cada um possa imaginar o desenrolar da história, muito bom.

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