Será que, depois de ontem, ele começará a viver? Será que conseguirá soltar-se das amarras e dos preconceitos e do desejo constante – da vida inteira – de querer agradar os outros para ser aceito e amado?
Será que esta chuva – que cai sobre justos e injustos – tornará seu dia mais ameno e menos amargo? Será que ele conseguirá olhar-se no espelho depois da noite de ontem?
Quantas dúvidas, meu Deus! Quanta fraqueza que se transformou em coragem; quanta mentira que virou verdade; quanta cabeça baixa que se transmutou em orgulho! O quarto de hotel muito caro numa região da cidade bem conhecida dele. O celular desligado, a chuva batendo no vidro do carro, a recepcionista do hotel com cara de tédio ou de ódio (ele não soube definir bem), todos estavam com raiva dele. Era isso! O paletó, a gravata, a camisa, a calça, os sapatos encharcados pela chuva que ele tomou entre o estacionamento e a entrada daquele hotel luxuoso onde ele queria se esconder do mundo.
Ainda ontem, o almoço com o pessoal do banco e a farra pelo casamento que se aproximava. Faltando um mês, os colegas todos comprando presentes, querendo saber detalhes dos preparativos da festa; o sogro mobiliando o apartamento de 500 metros quadrados da única filha. “Se eu não fizer por ela, por quem farei, meu rapaz? Ela é tudo pra mim! Sempre foi! E espero que seja pra você também!”. Os telefonemas da mãe, da sogra, do pai, do irmão mais novo, escolhido para padrinho com a namorada. O bolo, a igreja, as passagens de avião para Dubai. “Dubai? Que coisa mais cafona!”, pensou. “Por que não Roma, Atenas, Viena ou Londres, por exemplo? Mais cafona que Dubai, só lua de mel em Miami!”. Pensou, mas não falou. Como era seu costume, deixou-se levar, pois era mais fácil não argumentar, não se opor, deixar que os outros fizessem por ele. Aí estava o grande problema!
Com 30 anos, perdera tempo demais “deixando-se levar para não brigar”. Quatro anos de namoro e noivado, sem a mínima vontade de se casar, de ser pai, de herdar os negócios do sogro, de fazer tudo “como manda o figurino”. A noiva apaixonada, o sexo rotineiro, o riso forçado, as reuniões na casa dos pais dela pesando sobre os ombros do moço – um fardo, uma coisa insuportável!
Ontem, então, durante um dos numerosos jantares com as duas famílias e mais alguns agregados (não suportava aquilo!), ele exagerou no champagne francês. Aliás, champagne da melhor qualidade que o sogro fez “questão de abrir para celebrar a ocasião”. O noivo exagerou. Depois da quinta ou sexta taça, sob os olhares um tanto reprobatórios da noiva, ele foi até a janela enorme do apartamento enorme do bairro onde só moravam “ricos enormes” e tirou o paletó. Afrouxou a gravata que parecia sufocá-lo e respirou o ar fresco da noite. Ia chover.
Quando ela o abraçou por trás, dando e pedindo carinho, ele não se conteve. Incapaz de uma grosseria, contudo, passou a mão pelo próprio cabelo preto, que começava a ficar grisalho nas têmporas, e sentiu quando ela passou a mão suavemente pela barba cheia do noivo. Seus dedos deslizaram pelo vão da camisa. Ali, ela deixou sua mão mergulhada, escondida nos pelos abundantes que deixavam a camisa daquele homem um tanto estufada. Ficaram assim por vários segundos – ela de olhos fechados, romântica como sempre; ele, tomado de uma irritação até então desconhecida por todos, tirou a mão da moça de dentro de sua camisa e cambaleou até o enorme sofá do enorme apartamento.
Ele não se sentou propriamente – deixou-se cair, enquanto os outros conversavam animadamente e a noiva ficava sem entender o gesto um tanto brusco do moço. Ele teve vontade de dormir, pegar no sono ali mesmo, esquecer aquele espetáculo deprimente do qual fazia parte havia quatro anos. Levantou-se com alguma dificuldade e disse que ia fazer um pronunciamento. Todos se calaram e foram perdendo o sorriso aos poucos, mais pela surpresa do que pela inconveniência. Foi a vez de ele falar:
– Um minuto da atenção de vocês, por favor. Mamãe, papai, irmãozinho, cunhadinha, sogra, sogro, minha querida noiva e demais presentes: vou dizer algo muito sério. Pra mim, chega!
Todos se mantiveram em silêncio. O que chegava? O que ele estava dizendo? Bebera demais, claro. A mãe parara de contar na sexta taça de champagne. Foi ela que lhe lançou o olhar de quem diz: “Não dê vexame, meu filho. Não me envergonhe!”. Mas ele estava decidido. Com mãe ou sem mãe, quisessem ou não, ele falaria.
– Não vai mais haver casamento! Acabou a palhaçada! Vocês nunca me conheceram e está na hora de conhecerem. Chega desse negócio de bom moço, de executivo de sucesso, de herdeiro de fortuna, de noivo exemplar, de homem apaixonado e o escambau! Chega disso tudo! Chega de vocês pensarem que sou o que não sou. Chega de me esconder e de mentir para mim mesmo e para todos vocês desde que me conheço por gente. Vou ser sincero uma vez na vida, mas para não haver mais dúvidas: a pessoa que eu amo não está aqui hoje. A pessoa, o caramba! O homem que eu amo não está aqui. E sabem por quê? Porque eu não fui homem o bastante para ficar com ele, porque eu não fui homem o bastante para acabar com este circo e ir atrás da minha felicidade. Não aguento mais isto tudo! Chega! Acabou o casamento, acabou a farsa, acabou a palhaçada! Vou sair agora por aquela porta enorme, desta sala enorme, com um alívio enorme. Não quero nada disso pra mim. Só peço desculpas por ter tomado essa decisão a tão pouco tempo do casamento. Pra que mentir, pra que fingir o que não sinto, pra que estragar duas vidas – a minha e a desta moça aqui?
E, antes que a choradeira começasse e os sermões do sogro e do pai dele tivessem início, ele pegara o paletó e saíra para o corredor. A noiva ficou paralisada; o outros também ficaram sem ação. Por sorte, o elevador estava no andar de cima. Ele entrou e desceu, sem escalas. Encostou-se até chegar à garagem, onde uma vaga para seu carro estava sempre reservada. Entrou, subiu a rampa até a rua e, sem saber direito o que faria, acelerou o carro na chuva que lavava a cidade.
Lembrou-se do hotel aonde mais de uma vez tinha ido. Aonde o outro gostava de ir. Quanto tempo fazia isso? Meses, anos, séculos? E quanto tempo fazia que ele não via o homem que ele amava de verdade? A lembrança, a saudade, o convite para deixar aquela vida e viver sem mentiras. O outro chorando quando ele disse que iria se casar, que não podia terminar tudo com a moça etc. A última transa, o beijo de despedida, o dia em que ele quase atropelou o outro na rua com a noiva sentada ao seu lado! A troca de olhares pelo vidro. O dia em que ele viu o outro beijando um rapaz e a dor profunda de quem constata: “Podia ser eu!”.
Enquanto abria a porta do quarto, não tinha certeza de nada – eram só dúvidas que o acompanhavam. Jogou o bendito paletó sobre a cama, foi até a janela e deixou que os pingos caíssem no seu rosto – aquilo lhe fez bem, de alguma forma. Agora, mais sóbrio, ficou observando a cidade lá embaixo. Chuva e luzes se misturavam. Ele teve a lembrança de desligar o celular, sem sequer ver se havia mensagens. Não importava. Aliás, pouca coisa importava naquela noite. Quase nada!
Tirou o sapato molhado, depois a camisa, a calça, as meias e, finalmente, a cueca vermelha. Por que vestira uma cueca vermelha naquele dia? Não soube explicar. Totalmente nu, foi ao banheiro e ligou o chuveiro. Precisava de um banho quente, bem quente na verdade. À medida que a água foi escorrendo pelo seu corpo, sentiu-se excitado, surpreendentemente excitado. A lembrança do outro veio-lhe com força. Imaginou que estavam ali, juntos, só os dois, sem ninguém mais para separá-los.
O orgasmo foi intenso. Imaginou, depois, que o sabonete eram as mãos do outro sobre seu corpo, o outro que estava em algum lugar daquela imensa cidade, debaixo daquela chuva intensa.
Quando saiu do banheiro, já seco pela toalha branca e perfumada do hotel, jogou-se, exausto, na cama.
Chorou muito antes de pegar no sono. Naquela noite, sonhou que beijava o outro – um beijo bonito, demorado… sem fim.
1 Comments
Crônica intensa e tensa.
Fui lendo e se posso dizer assim,sentindo as angústias deste rapaz,a tensão no “enorme” apartamento crescendo dentro dele até a explosão.
Ao mesmo tempo imaginando o alívio que ele sentiu ao contar tudo e claro imaginando os receios e alegrias dele a partir daquele momento ,pois poderia ser ele mesmo ,sem mentiras e isto
depois de tantos anos ,com certeza geram incertezas.
Linda Cena final.
Triste e de Esperança.
Ele teria de ter Coragem e para mim teria de começar a Nova “Velha “Vida,só que sem ter de se esconder como fizera antes.
Bela Crônica.