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UM PROFESSOR E A ARTE DO PERDÃO

O ano era 1960. Eu estava com dez anos e tinha um grande amigo na escola. Vivíamos juntos para cima e para baixo – jogando bola, assistindo à TV, estudando pras provas… tudo o que a garotada fazia naquela época em que ter um aparelho de televisão em preto e branco era o máximo de tecnologia que a gente podia desejar!

Na casa desse meu amigo, morava um tio solteirão, homem de seus 30 anos, irmão do pai. Bonitão, era professor de português na escola em que a gente estudava, embora nunca tivesse chegado a ser nosso professor. Havia muita fofoca na vizinhança sobre aquele homem – por ser solteiro, por nunca ter sido visto com uma namorada, por absolutamente jamais se interessar por qualquer moça do bairro. Tudo era motivo de falatório.

Eu e meu amigo éramos muito meninos e ingênuos para percebermos o que os adultos falavam à boca pequena, mas tudo ficou muito claro pra mim depois que cresci. Na minha lembrança, aquele homem simpático, tranquilo e inteligente sempre foi uma figura gentil, de fala muito pausada e de uma cultura bem vasta. Dizia que seu tesouro eram seus livros e que não precisava de mais nada para lhe fazer companhia.

Lembro-me do ano em que ele salvou a minha pele. Eu já estava no ginásio, ia mal em português e estava prontinho para ser reprovado e tomar aquela surra do meu pai por “ser desleixado e vagabundo com os estudos”. Pois bem: o tio do meu amigo perdeu um domingo inteiro comigo, me ensinando, pacientemente, a bendita análise sintática, que eu sempre detestei. Ele me explicou a matéria com toda a calma do mundo, teoria e exercícios. Tirei um sonoro 8,5 (fato heroico em se tratando de mim!) e fui aprovado! Jamais vou me esquecer de sua gentileza e de sua boa vontade!

Um dia, isso era 1967, estávamos eu e meu amigo conversando na sala de jantar da casa dele, quando seu tio chegou, cumprimentou-nos da mesma forma elegante de sempre e sentou-se na poltrona que ficava na lateral da sala. Naquela tarde, meu amigo estava bem chateado com um outro amigo nosso que, por motivo bem simples, o havia ofendido. Por causa de uma menina, os dois se desentenderam e a amizade, pelo visto, foi pro brejo. O outro disse coisas bem pesadas pro meu amigo, e só não saíram no tapa porque eu não deixei.

Quando viu o sobrinho triste, foi à estante, pegou um livro e disse: “Meninos, prestem atenção. Vocês estão começando a viver e a se decepcionar com as pessoas. Eu sei do que falo sobre ofensas, fofocas e maledicências. Só há um caminho, se quiserem viver bem. Vocês não conhecem o escritor Malba Tahan, que, na verdade, é brasileiro e se chamada Júlio César de Mello e Souza. É um professor como eu e escreveu textos belíssimos sobre a vida e sobre os homens, sempre usando os povos do Oriente Médio para seus ensinamentos. Prestem atenção a esta história”. E começou a ler:

                                                                                                                             APRENDE A ESCREVER NA AREIA

Dois amigos, Mussa e Nagib, viajavam pelas longas estradas que recortam as tristes e sombrias montanhas da Pérsia. Eram nobres e ricos e se faziam acompanhar de servos, ajudantes e caravaneiros. Chegaram, certa manhã, às margens de um grande rio barrento e impetuoso. Era preciso transpor a corrente ameaçadora. Ao saltar, porém, de uma pedra, Mussa foi infeliz e caiu no torvelinho espumante das águas em revolta.

Teria, ali, perecido, arrastado para o abismo, se não fosse Nagib. Este, sem a menor hesitação, atirou-se à correnteza e, lutando furiosamente, conseguiu trazer a salvo o companheiro de jornada. Que fez Mussa? Ordenou que o mais hábil de seus servos gravasse na face lisa de uma grande pedra, que ali se erguia, esta legenda admirável:

Viandante: neste lugar, durante uma jornada, Nagib salvou, heroicamente, seu amigo Mussa”.

Isso feito, prosseguiram, com suas caravanas, pelos infindáveis caminhos de Allah. Alguns meses depois, de regresso às suas terras, novamente se viram forçados a atravessarem o mesmo rio, naquele mesmo lugar perigoso e trágico. E, como se sentissem fatigados, resolveram repousar à sombra acolhedora do lajedo que ostentava a honrosa inscrição. Sentados, pois, na areia clara, puseram-se a conversar. Eis que, por motivo fútil, surge, de repente, grave desavença entre os dois companheiros. Discordaram, discutiram. Nagib, exaltado, num ímpeto de cólera, esbofeteou brutalmente o amigo. Que fez Mussa? Que farias tu em seu lugar? Mussa não revidou a ofensa. Ergueu-se e, tomando tranquilo o seu bastão, escreveu na areia clara, ao pé do negro rochedo:

Viandante: neste lugar, por motivo fútil, Nagib injuriou, gravemente, seu amigo Mussa”.

Surpreendido com o estranho proceder, um dos ajudantes de Mussa observou, respeitoso: – Senhor! Da primeira vez, pra exaltar a abnegação de Nagib, mandastes gravar, para sempre, na pedra, o feito heroico. E agora, que ele acaba de ofender-vos tão gravemente, vós vos limitais a escrever, na areia incerta, o ato e a covardia! A primeira legenda, ó xeique, ficará para sempre. Todos os que transitarem por este sítio dela terão notícia. Esta outra, porém, riscada no tapete de areia, antes do cair da tarde terá desaparecido, como um traço de espuma entre as ondas buliçosas do mar.

Respondeu Mussa: – A razão é simples. O benefício que recebi de Nagib permanecerá, para sempre, em meu coração. Mas a injúria… essa negra injúria… escrevo-a na areia, como um voto, para que, se depressa daqui se apagar e desaparecer, mais depressa ainda desapareça e se apague da minha lembrança!

Assim é, meu amigo! Aprende a gravar, na pedra, os favores que receberes, os benefícios que te fizerem, as palavras de carinho, simpatia e estímulo que ouvires. Aprende, porém, a escrever, na areia, as injúrias, as ingratidões, as perfídias e as ironias que te ferirem pela estrada agreste da vida. Aprende a gravar, assim, na pedra; aprende a escrever, assim, na areia… e serás feliz!

                                                                                                                                                      ****************

Essa história ficou comigo até hoje. Não apenas pelo seu conteúdo, mas também porque estávamos (meu amigo e eu) muito chateados com a briga daquele dia. O modo como aquele professor nos leu aquele texto, contudo, foi o mais marcante. Um homem que aprendera a não dar importância ao que diziam dele; um homem que sempre levou sua vida com muita dignidade e elegância, apesar da maldade das pessoas que o cercavam.

Só muito mais tarde fui entender muita coisa. Em 1987, 20 anos depois daquele dia em que ele nos apresentou o bonito texto de Malba Tahan, o professor veio a falecer em decorrência da Aids. Não pude deixar de dar um abraço em meu amigo pela triste perda. Fiquei muito triste também.

Até hoje, fico imaginando quantas e quantas vezes ele teve de escrever na areia as ofensas que recebeu na vida. Fico pensando em quantas e quantas vezes ele teve de escrever na areia os atos preconceituosos de que foi vítima.

Espero, de coração, que assim tenha sido feliz!

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

4 Comments

  1. Hoje li um publicação no Facebook, a pessoa que escreveu é da minha cidade, e o texto começa assim: “numa cidade pequena como a nossa, onde todos se conhecem, quando a gente cruzar com um parente, um amigo, um colega, um conhecido na rua; não custa nada dar: um ” oi, um bom dia, uma boa noite, etc”., isto chama-se ato de cortesia, de consideração, de estar bem com a vida e passar otimismo, alegria para o dia de alguém “, não é lei, é apenas uma questão de cavalheirismo”.

    Professor, para mim a Crônica veio de encontro com o que passamos aqui na cidade que moro. Pessoas que nos conhecem e fingem que não: isso é uma afronta, um desrespeito, falam das nossas vidas por aí, no meu caso, solteiro, 58 anos de idade indo para os 59. Há tempos tentaram me humilhar em um Clube aqui da cidade, lá estavam pessoas “da nata” como falamos aqui. Pois bem, o cidadão falou o que quis, ouviu o que jamais imaginaria.

  2. Ricardo Cano disse:

    Sábias palavras.

  3. Baltasar Pereira disse:

    Bela Crônica em que mostra a Sensibilidade de um Professor ,Tio do Amigo de quem conta a História e uma Bela Homenagem a Malba Tahan.
    Belo Texto deste escritor,Malba Tahan, aqui exposto e quanto de ensinamento apresenta o mesmo.
    Fiquei triste com o final da história com a morte do Tio do Amigo. 👏👏👏

  4. Clarice keri disse:

    Linda história e uma lição forte.

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