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OUTROS TEMPOS

Estamos em julho de 1966 e vamos encontrar nossos personagens em seu grande e rico apartamento na avenida Higienópolis, bairro nobre de São Paulo. Como sempre, os dois homens estão quietos, cada um em sua poltrona, cada um com seu livro, enquanto a vitrola toca um concerto para piano e orquestra de um compositor europeu.

Na sala, além da música clássica, apenas o som da chuva batendo no vidro da grande janela que dá para a avenida. Dia frio na cidade. Lá fora, raras pessoas nas ruas sob a garoa já famosa na metrópole. Os dias estão estranhos, melhor a cautela e a prudência.

– A discrição, Paulo. A discrição!

É o mais velho dos dois homens com sua recomendação constante ao mais novo.

Se, na Copa do Mundo que todos acompanham somente (ainda) pelo rádio, o Brasil não vai bem, por aqui as coisas também não parecem certas. Desde dois anos antes, uma apreensão e uma incerteza pairam no ar. Se lá na Inglaterra o time bicampeão do mundo não encanta, por aqui estão todos preocupados com o que pode acontecer na política e na economia. Nossos dois homens mal fazem ideia do que virá pela frente.

Eles vivem juntos há dois anos. Ernesto é o mais velho deles – 50 anos. Paulo tem 45. Conheceram-se num bonde que ia para o centro onde trabalhavam, sem o saber, muito perto um do outro. Ernesto, respeitável advogado, tem seu escritório na rua Boa Vista. Paulo, bancário, trabalha na Praça da Sé. São Paulo ainda é uma cidade elegante.

Foi Paulo quem se sentou ao lado de Ernesto. Por algum problema, o bonde parou. Os passageiros ficaram preocupados; conversa vai, conversa vem, e os dois homens começaram a falar sobre atrasos, trabalhos, gostos e horários de almoço. Ernesto ficou sabendo que Paulo não era da cidade.

– Sou de Jaú. Estou aqui há cinco anos. Fui transferido pelo banco e nunca mais voltei para o interior. Minha família está toda lá. Estou sozinho em São Paulo.

Ernesto notou a ênfase no “sozinho”. Discreto como sempre, não demonstrou, mas sentiu algo diferente. Naquele mesmo dia, os dois homens se encontravam para jantar num bonito restaurante do Largo do Arouche. Os encontros se repetiram, os olhares tudo falavam, mas os gestos, contidos de ambas as partes, ainda davam um ar e mistério a tudo aquilo.

Depois de duas semanas, Ernesto, o respeitável senhor Ernesto, morador de Higienópolis, advogado, sério e muito decente, convidava Paulo para jantar em sua casa. Comida feita pela empregada que ia embora às 18h em ponto, o único trabalho era esquentar e pôr a mesa, coisas que ele sabia fazer com muita habilidade.

Paulo começou a se tornar conhecido no prédio. Não demorou muito, vizinhos começaram a falar e a comentar sobre “o amigo do doutor Ernesto”. Mas, claro, tudo à boca pequena, entre dentes, que o vizinho sério e decente não admitia intimidades e falatórios, muito menos gente bisbilhoteira.

E assim, Paulo foi morar com Ernesto, pondo fim à solidão dos dois. São Paulo já era grande, muito grande para dois seres que vagavam por suas ruas à procura de não sabiam o quê. O amor? Talvez o amor. Uma companhia? Certamente isso!

– A discrição, Paulo! A discrição!

No princípio, o estranhamento dos moradores. Alguns olhavam Paulo de cima a baixo no elevador – não porque o homem fosse feio ou desalinhado. Não! Paulo era bem bonito, sempre de terno e gravata, cabelos bem penteados e ajeitados com brilhantina. Sapatos bem engraxados e brilhantes. O bigode cheio veio depois, que lhe deu um ar ainda mais sério e condizente com o bairro e com o condomínio para onde se mudara. O problema era que, no prédio, todo o mundo já sabia que o seu Ernesto, o solteirão rico da cobertura, já não era tão solteirão assim. Quem diria!

Os dois saíam juntos e chegavam juntos de segunda a sexta. Nos fins de semana, passeavam pelo bairro ou iam a eventos sociais. Ernesto gostava de futebol. Paulo, não. Ainda assim, o mais novo frequentava o Pacaembu com o outro, que torcia para o Santos de Pelé e sempre que podia ia ver aquele time maravilhoso no estádio tão pertinho de onde moravam.

Sempre discretos e elegantes, a dupla impõe respeito. Não há excessos, não há gestos bruscos, nem qualquer ato que dê motivos aos moradores do edifício nobre razões para mexericos e maledicências. A gente má, porém, quando não encontra porquês, consegue inventá-los sempre. E, claro, os dois são sempre assunto nas rodas de vizinhos que se encontram no saguão do prédio ou mesmo nas calçadas do bairro. Quem diria!, repetem sempre. O doutor Ernesto!

Vamos ver os dois, como foi dito no início desta história, sentados na sala ampla e muito bem decorada. Estão lendo, vestem roupas de inverno, a música enche o ambiente, fazendo uma composição interessante e bonita com a chuva lá fora. O Brasil acabou de perder para a Hungria (3 a 1), e o sonho do tricampeonato parece cada vez mais distante. Terão de esperar o filme do jogo chegar de avião para poderem assistir ao chamado “vídeo tape” – mais Ernesto do que Paulo, que não se empolga muito com o futebol, nem sofre com a seleção.

De vez em quando, levantam os olhos dos respectivos livros e trocam olhares de muito carinho e cumplicidade. Ernesto é mais introvertido e, às vezes, se acha o homem de mais sorte no mundo por ter encontrado o outro. Paulo, depois de dois anos, está feliz e ainda pensa na própria vida com surpresa e espanto. Por quanto tempo tudo aquilo vai durar? Ninguém sabe. Ninguém jamais sabe!

Se você, leitor, esperava algum acontecimento triste, dramático ou marcante nesta breve história, sinto muito decepcioná-lo. Escrevo apenas para lembrar a você que nem todas as histórias têm um enredo de altos e baixos como nos filmes. Nesta, dois homens que se amam são felizes juntos e isso basta. Chega-se a uma idade em que a cumplicidade é mais importante do que a paixão e o desejo carnal. Paulo e Ernesto estão juntos para enfrentar o que virá – a derrota do Brasil na Copa, o caos político que vai se estender até o terror, a desordem econômica que varrerá o país, os tristes dias que virão. (Até os bondes, tão bonitos e importantes para eles, vão circular sob a garoa de São Paulo só mais dois anos.)

Eles não sabem, mas é para enfrentarem tudo isso juntos que se encontraram. O Amor, às vezes, atende pelo nome de Destino.  

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

6 Comments

  1. Clarice keri disse:

    História linda e bem escrita, e realmente não esperei esse final mas com certeza ficou perfeito, uma definição simples do amor que nos pega de surpresa no meio de tanta coisa complicada, obrigada, como sempre eu amei.

  2. O que seríamos sem o amor? Final perfeito, a foto maravilhosa com conteúdo riquíssimo.

    • Baltasar Pereira disse:

      Eu não vou mentir,fui ficando curioso para saber o que iria ocorrer e o final é que me surpreendeu,pois mostrou os dias e acontecimentos e até receios normais do dia a dia.

      Claro que na Época retratada tínhamos a Ditadura Militar que por si só é um momento de muita,mas muita tensão e ser Homossexual assumido,mesmo que não fosse falado,era ainda muito mal visto, aliás mesmo nos dias de hoje,imagine naquela Época .

      Conhecemos algumas nuanças das personalidades dos Personagens Centrais e idéia sobre a Copa do Mundo de 1966. Gostei e muito da Crônica e do desfecho diferente.

  3. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Maravilha de crônica. Uma história de amor!
    Cumplicidade, carinho, gratidão, compreensão se bastam em gestos, olhares e sorrisos.
    O amor. Oh Lord
    Parabéns!!!!!!!

  4. Roberto disse:

    Fala Vitão! Parabéns por mais essa crônica. Muita sensibilidade nessas palavras. Abraços, Bob

  5. Ricardo Cano disse:

    Uma palavra: suavidade.

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