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UM CONTO DE NATAL

Ele chegou em casa feliz e sorridente. A mãe não entendeu bem o motivo de tanta alegria, pois o filho chegava sempre sério, cansado, um tanto infeliz com o trabalho do dia inteiro naquele banco. Ela, contudo, resolveu não perguntar o porquê de tanta felicidade.

Viu o filho de 50 anos tirar o paletó, soltar a gravata, pegar uma cerveja na geladeira e perguntar-lhe onde passariam o Natal. A pergunta pegou a mulher de surpresa, porque ele detestava, simplesmente detestava passar a noite de 24 de dezembro na casa de parentes. A pergunta pegou-a desprevenida e ela não soube responder – claro que os planos eram exatamente ir para a casa de algum parente, onde o restante da família também estaria. Como em todos os anos anteriores – parentes reunidos, uma tonelada de comida, todo o mundo enchendo a cara etc. Ela, porém, não falou nada.

Em vez disso, resolveu aproveitar o bom humor do filho e disse-lhe que precisava de sua ajuda para as compras natalinas – presentes para parentes, amigos e para alguns vizinhos sempre solícitos. Entre um gole e outro de cerveja, ele concordou, sem discutir. E a mulher ficou sem entender nada de vez. O pai estava vendo TV e assim continuou.

Ele era um homem de 50 anos, como se viu, que morava com os pais e sustentava a casa. Os irmãos mais novos tinham se casado e se mudado de lá. Viviam suas vidas com esposas e filhos e tomavam conhecimento dos pais esporadicamente. “Coitados, têm sua própria vida e seus problemas. Não podem se preocupar comigo e com o seu pai”, dizia a mãe. Aquilo, dito assim, provocava a raiva no filho, que se via como único responsável pelo cuidado dos velhos. O que eles tinham de coitados? E o que tinha sido sua própria vida naqueles 50 anos?

Na verdade, tinha sido uma vida de renúncias. Fora ficando com os pais enquanto os irmãos saíam e cuidavam de suas vidas amorosas e financeiras. Ele, o filho mais velho, sempre sério, sempre responsável, estudava e trabalhava; depois, trabalhou muito e não viu os anos passarem. Quando parou para raciocinar, estava cuidando da mãe e do pai, como se aquilo não fosse também papel dos outros filhos. Quando percebeu, era dele a obrigação – não mais dos outros.

Ser um homossexual dentro de uma família tão tradicional também contribuiu para tudo isso. Sim, a vida (como se dizia mesmo?), a “vida no armário”, os casos e namoros que não duravam mais do que alguns meses e que nunca se tornavam “reais” para o restante da família. Ele sempre sozinho, como se fosse assexuado e cumprisse sua única missão – a de cuidar dos velhos. Nunca alguém lhe perguntando se era feliz, se amava alguém, se levava a vida que gostaria de levar. Nunca alguém se interessando em lhe perguntar como “estavam as coisas”. Nunca! Ninguém!

Os quase 30 anos no mesmo banco privado. A chegada à gerência depois da faculdade concluída. O salário melhor, uma vida melhor para ele e para os pais, sempre dividindo seu progresso material com eles, sempre a responsabilidade do filho mais velho, do tio bacana, do irmão paciente, do cunhado quietão, do sobrinho legal. E era sempre no Natal que tudo isso vinha como uma cascata de pensamentos e o deixava antes triste do que irascível. Era sempre no Natal, no fim de ano, naqueles dias quentes e insuportáveis, que ele sentia a solidão e a falta de alguém que lhe tirasse da mesmice e do tédio. Sua companhia eram os filmes na TV a cabo no seu quarto e os livros de romance policial.

Sentia-se um robô dentro do terno que vestia de manhã quando ia para o trabalho. Lá, a administração de uma agência mediana, num bairro próximo ao seu. Clientes conhecidos, gente simples, funcionários que o respeitavam, mas que não o conheciam. O peso dos dias, o peso do trabalho, da família. O cansaço de tanta coisa!

Nos fins de semana, era sempre o supermercado com a mãe e o pai. Era ele quem dirigia, era no cartão dele que as compras eram feitas. Era ele quem pagava os planos de saúde dos velhos – era ele quem, com raras exceções, sempre levava os dois a consultas médicas de rotina. Era natural que os irmãos se omitissem: tinha o outro que fazia tudo.

Vamos vê-lo, porém, chegando em casa feliz e sorridente. A mãe, como também se viu, não entendeu muito bem a disposição do filho. Aproveitou para pedir-lhe mais – como se o que ele fazia durante todo o ano (durante todos os anos) não fosse o suficiente. Ele concordou. Mas o que estava acontecendo?

Bem, nosso gerente estava apaixonado, logo se podia ver. Bastaria que a mãe ou o pai observassem o filho com mais atenção para que notassem a mudança no comportamento dele. Fazia alguns dias que um novo gerente de contas fora admitido na agência. Amor à primeira vista? Ah, ele estava muito velho pra acreditar nisso… achava-se muito velho para acreditar numa série de coisas.

Ele precisava, contudo, se libertar da segurança que a solidão lhe trazia. Trocara olhares com o outro, via possibilidades, levantava hipóteses, fazia conjecturas. Nestes tempos modernos, os mais novos não estavam a fim de esconder suas preferências e gostos. Tudo tão diferente de antigamente! Tão diferente! O banco não poderia demitir ninguém por “homofobia”, essa palavra que amiúde se lia e se ouvia em toda parte.

E, pegando carona (quem sabe!) no tal do politicamente correto, nosso homem poderia levar uma vida mais leve, menos aprisionada a convenções e hábitos ultrapassados. Era esse o motivo da alegria naquela noite. E, se não bastasse a paixão que aflorava, lembrou da manhã do mesmo dia, quando resolveram fazer a brincadeira de amigo secreto na agência. Notou que os funcionários ficaram meio “assim” de chamar o chefe, mas chamaram. De início, pensou em não participar, pois achava que aquela deveria ser uma brincadeira entre os funcionários, sem uma figura de autoridade; depois, e principalmente, porque não gostava da época de Natal, como já vimos. Ainda assim, foi convencido a entrar e não teve como fugir.

Quando abriu o papelzinho, mal pôde acreditar – lá estava o nome desejado, o nome do novo gerente que entrara na agência havia tão pouco tempo. Mais um motivo, portanto, para que ele chegasse em casa como chegou, para estranhamento da mãe.

Durante o banho, encheu a banheira e mergulhou o corpo cansado na espuma perfumada. Pensando no outro, não resistiu – de olhos fechados, tal como um adolescente, acariciou a si mesmo e se satisfez como em tantas noites naquele quarto. Enxaguou o corpo perfumado, vestiu uma bermuda azul e uma camiseta vermelha e desceu para a sala.

Durante o jantar, ficou pensando no presente que compraria. Tinha de pensar logo, pois as lojas estavam cada vez mais cheias, e o atendimento, cada vez pior. Compraria no dia seguinte! Sim! Pensaria durante a noite e, no dia seguinte, na hora do almoço, compraria o presente. A entrega estava marcada para o dia 23, último dia útil antes do Natal.

Durante toda a manhã seguinte, observou bem a pessoa que tirara… vinha observando-a havia tanto tempo! Um mês? Isso! Não sabia como se aproximar, como conversar sobre qualquer coisa que não fosse sobre o banco e os clientes e suas contas, sem criar um clima sério e formal entre um gerente geral e um subordinado. Preferiu não se aproximar. Como era mesmo aquela máxima de Mark Twain? “A gente não se liberta de um modo de vida atirando-o pela janela: é preciso fazê-lo descer a escada, degrau por degrau”. Era isso!

Cinquenta anos, nenhuma história de amor digno de nota, nenhum rosto que lhe trouxesse saudade ou lhe despertasse a nostalgia. Nada! Por quanto tempo se pode viver assim? De trás de sua escrivaninha, fingia olhar a tela do computador, mas estava longe dali, ou melhor, estava pensando no outro, de cuja vida ele sabia tão pouco: 33 anos, solteiro, formado em Administração, funcionário do banco havia apenas dois anos, vindo de outro banco concorrente. Só isso.

Falar com o subordinado exigia-lhe um certo equilíbrio e frieza que ele não tinha. As mãos molhadas de suor, os óculos embaçados pelo suor do rosto, a culpa jogada no “ar condicionado desta agência que nunca funciona direito”, as palavras que não saíam como ele queria. Tortura!

Ele comprara o presente, mas não tinha certeza se fizera uma boa escolha. Pensou em trocá-lo, não trocou. Na véspera, foi ao barbeiro: cortou o cabelo, aparou a barba e o bigode espessos, remoçou um pouco. Na agência, todos notaram a mudança – e uma cliente mais atrevida fez o elogio que lhe deixou vermelho de vergonha. “Fulano, você está bonitão, hein… tá apaixonado?”. Ele negou. Ela não acreditou.

Finalmente, chegou o dia do tal almoço para a entrega dos presentes. Agência enfeitada, árvore de Natal que combinava bolas vermelhas e brancas, caixas (os poucos que ainda restavam) usando gorros de Papai Noel e ganhando caixas de bombons e panetones de alguns clientes mais gentis e antigos. Todos olhando no relógio, contando as horas para o fechamento da agência. Clima de fim de ano.

Na manhã daquele dia, 23 de dezembro, observou o comportamento do outro e tomou uma decisão – talvez a decisão mais importante de sua vida até ali. Enquanto a agência era fechada, ele escrevia um cartão no qual abria seu coração – um cartão como nunca antes, em seus 50 anos, havia escrito na vida. Palavras doces, palavras ternas, palavras de alguém que toma uma decisão difícil diante dos obstáculos que são somente seus, de mais ninguém.

Foram ao restaurante escolhido, bem perto da agência. Terminado o almoço de confraternização, alguém gritou que estava na hora de trocarem os presentes de amigo secreto. Em meio à algazarra, o gerente viu quando uma funcionária cumprimentou o rapaz e perguntou-lhe quando seria o casamento. O outro respondeu que em breve, pois passaria o reveillon na casa dos pais do namorado, em Goiânia. Ela disse que sempre acompanhava as fotos do casal no Face. Todo o mundo, aparentemente, sabia que isso ia ocorrer. Menos nosso gerente geral.  

Não se usavam mais os cartões – usavam-se as redes sociais em que “privacidade” é palavra desconhecida. Nosso gerente sentiu-se subitamente muito velho, sem um lugar que lhe pertencesse no mundo. Sua vida tinha-lhe escapado como areia entre os dedos. Para onde tinha ido? O que lhe restava? Entre uma garfada e outra, entre um gole de vinho e outro, ele ia pensando e mentalmente se ausentava dali.

Àquela altura, o almoço propriamente dito ia terminando. Todos, um tanto alcoolizados, riam e brincavam. Alguém gritou que era a hora da troca de presentes. Aplausos gerais! Aquele Natal seria muito bom pra todos – e o ano novo, melhor ainda! Tinham fé!

Na ponta da mesa, nosso gerente discretamente rasgava o cartão que havia escrito para seu amigo secreto. Por trás de seus óculos, viu a alegria estampada no rosto de todos – e fingiu alegria também.

 

Querido leitor, tenha um Feliz Natal e jamais deixe de viver a sua vida e de aproveitar o seu tempo! 

Vítor França Galvão
Vítor França Galvão
Ariano, professor de português e cronista, é fã de Rubem Braga, Cecília Meireles e Graciliano Ramos (na literatura), de Bruce Springsteen (na música) e Bette Davis e William Holden (no cinema). Gay desde sempre, adora chocolate, filmes clássicos e viagens - principalmente para San Francisco, na Califórnia. Ama seus irmãos e amigos e não dispensa boas e animadas reuniões com eles. Escreve como forma de tentar entender melhor as pessoas e a vida.

5 Comments

  1. Angelo Antonio Pavone disse:

    Olá Prof Vitor
    Excelente crônica, como sempre .
    Ela é mais um exemplo de que a vida é uma sucessão de acasos e coincidências. Nada é fácil
    Parabéns!!!!

  2. Roberto disse:

    Excelente crônica, Vitão! Já gostei mais dessa época de festas, mas tento aproveitar apreciando as comidas. Feliz Natal, meu amigo. Abraços pra você e seus irmãos.

  3. Ah, professor já passei por algo parecido, isso é uma tortura! Há anos não tenho aproveitado mais essas datas, e o Gerente Gral por sua vez continuou no “vácuo”.

  4. * correção, Gerente Geral

  5. Clarice keri disse:

    Vitor obrigada pela linda crônica e pela mensagem, adorei.

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